Ensinar, por Espíritos Diversos
Caridade e Desenvolvimento
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Num grupo de inquietas senhoras, após a reunião em que se haviam comunicado
diversos Espíritos amigos, estalavam ruidosos comentários.
A palestra não interessava à vida alheia, segundo antiga acusação lançada às
filhas de Eva; contudo, a nota dominante era a leviandade.
Falava-se entusiasticamente a respeito da prática e propaganda dos
postulados espiritistas. Umas alegavam perseguições do Invisível, outras
aludiam às aventuras dos maridos inconstantes, atribuindo as penas
domésticas à influência dos maus Espíritos. Dentre todas, destacava-se a
senhora Laurentina Cardoso pelo fervor sincero que lhe brilhava nos olhos.
Divergindo da maioria, seus pareceres demonstravam singular interesse no
assunto.
– Sinto-me transportada a região desconhecida – dirigia-se, impressionada, à
diretora da feminil assembléia –, o mundo invisível nos arrebata à
compreensão nova. Quão enorme é o serviço do bem a realizar!
E cruzando as mãos no peito, gesto que lhe era característico em instantes
de profunda impressão, continuava, bondosa:
– Que fazer para cooperar no trabalho sublime?
Quanto desejava ser útil aos infelizes da esfera espiritual!...
– Sim, minha filha – explicava a presidente –, é preciso desenvolver-se,
aproveitar suas faculdades no esclarecimento de nossos irmãos atrasados.
Seja atenta ao dever e alcançará os mais nobres valores.
– Não poderia a senhora consultar os instrutores espirituais nesse sentido?
– indagou dona Laurentina, ansiosa.
– Perfeitamente.
E, decorridos alguns dias, escrevia-lhe solícito o orientador da reunião:
– Minha irmã, Deus te abençoe o propósito de fraternidade e confiança.
Continua devotada ao bem do próximo. A caridade é luminoso caminho de
redenção. Não a esqueças na experiência humana e, a fim de estenderes a
divina virtude, não desprezes o desenvolvimento próprio. Companheiros
abnegados, no plano invisível, seguirão teus passos na edificação de ti
mesma. Ora, vigia, trabalha, espera e sobretudo confia em Deus.
A Srª. Cardoso estava radiante. Figurou-se-lhe a pequenina mensagem
verdadeiro bilhete de luz, habilitando-a a conviver com os gênios
celestiais. Leu, releu, dobrou a folha minúscula, guardando-a na bolsa de
passeio; enxugou as lágrimas que a emotividade lhe trouxera aos olhos e
agradeceu a dádiva jubilosamente.
Desde esse dia, transformou-se o lar de Joaquim Oliveira Cardoso. O marido
de dona Laurentina, homem de negócios ativos nos círculos industriais e
financeiros, notou a mudança, assaz surpreendido. A esposa dedicada e
carinhosa multiplicava os pedidos de licença para comparecer às reuniões
variadas e múltiplas, destinadas a experimentação mediúnica. Avolumando-se
dessarte os pedidos, Joaquim lhe fez ampla concessão a tal respeito. A
companheira nunca o desgostara em qualquer circunstância. Humilde e
abnegada, auxiliara-o na construção da fortuna sólida. Jamais demonstrara a
vaidade ridícula dos novos ricos. Sempre se conduzira à altura da sua
expectativa de homem consagrado à cultura intelectual e às boas maneiras.
Desinteressada de exibições sociais, distante do convencionalismo balofo,
dividia a existência com ele e os quatro filhinhos. Por que lhe impor
restrições ingratas? Não compreendia aquele Espiritismo que se instalara na
mente da esposa, mas não encontrava razão para proibir-lhe manifestações de
fé. Além disso, Laurentina se entregava a semelhante movimento em companhia
de relações respeitáveis. Esses raciocínios o tranquilizavam, mas, no
entanto, os dias se incumbiram de lhe carrear ao cérebro novas preocupações.
Laurentina parecia obcecada. Não lhe interessava a mudança de cortinas, a
limpeza dos quadros, a proteção dos livros prediletos. Aranhas andavam à
solta, os espanadores pareciam aposentados. O chefe da casa duplicou o
número de criadas, temendo situações mais difíceis.
Decorreram um, dois, três anos. Preocupava-se agora o capitalista, não só
com a indiferença da esposa, no tocante ao ambiente doméstico, como também
com a conduta maternal. É que, ao nascer o quinto filho, Laurentina
requisitou o concurso da ama de leite. Alegando falta de tempo, o petiz foi
entregue aos cuidados de uma pobre senhora que se prontificou ao serviço,
mediante remuneração adequada. O marido, todavia, atendeu ao problema,
fundamente amargurado. Servidores a mais ou a menos não lhe alteravam o
programa econômico, mas a disposição da companheira desgostava-o. Suportou,
contudo, a situação, sem queixas que a pudessem magoar.
O panorama caseiro prosseguia sem modificações, quando o sexto filhinho
alegrou o casal. Decorridos dois meses em que a ama regressara ao serviço
ativo, Joaquim valeu-se de momento íntimo, na hora da refeição, e falou à
esposa, delicadamente:
Tens observado a saúde do pequenino? Não te parece disposto a anemia
profunda?
Dona Laurentina não pôde disfarçar o desapontamento ante a observação
inesperada, e explicou:
– Ainda ontem ponderei a conveniência de levá-lo ao médico.
Cardoso fez o gesto de quem não deve adiar soluções justas e acrescentou.
– Creio, Laurentina, que o caso não se prende a consultório, mas
propriamente ao lar.
Ela empalideceu e o marido prosseguiu:
– Sinto ferir-te a sensibilidade, mas hás de concordar que o leite materno,
sempre que possível, não deve ser negado à criança. Reconheço, todavia, que
multiplicaste talvez excessivamente as obrigações sociais.
Tão ligada aos filhinhos, noutro tempo, não hesitas agora em voltar sempre
tarde, confiando-os quase absolutamente às criadas. Não firo o assunto no
propósito de repreender; tuas companheiras são respeitabilíssimas;
entretanto...
– É que desconheces o serviço da caridade, Joaquim – atalhou melindrada com
a delicada repreensão diante dos filhos –, minha ausência de casa obedece a
trabalhos importantes, com que procuro atender aos bons Espíritos.
A pequena Luísa, filhinha do casal, com a gracilidade espontânea dos seis
anos, obtemperou com interesse e vivacidade :
– Papai, esses Espíritos devem ser maus, porque não deixam a mamãe voltar
cedo. Sinto tanta falta dela!
O chefe da família sorriu significativamente e retrucou :
– Talvez tenhas razão, minha filha. Esses Espíritos podem ser bons para toda
gente, menos para nós.
Dona Laurentina esforçou-se para que as lágrimas não caíssem dos olhos, ali
mesmo, e retirou-se desolada ao seu aposento. A pobre senhora se desfez em
pranto amargo. Sentia-se vítima de angustiosa incompreensão. Não atendia a
serviços de caridade? Não tentava desenvolver faculdades mediúnicas por
consagrá-las ao alívio dos sofredores? Nessa noite, porém, esquivou-se à
sessão costumeira. Precisava orar, meditar, ensimesmar-se. Rogou
fervorosamente a Jesus lhe permitisse receber inspirações da Verdade. E, com
efeito, sonhou que se aproximava de amplo e luminoso recinto, onde
pontificava generosa entidade a serviço do bem. Guardava, por isso, a
impressão de haver encontrado um anjo de Deus. Ajoelhou-se aflita e
confiou-lhe as mágoas da alma sensível e afetuosa. Não acusava o marido nem
se queixava dos filhinhos, mas pedia socorro para que lhe compreendessem o
intuito. Ao fim de confidências angustiosas, o amigo afagou-lhe a fronte e
explicou :
– Volta ao trabalho, Laurentina, e não te percas em lágrimas injustas. O
companheiro é digno e bom, os filhinhos são flores do coração. Atende ao
dever, minha amiga.
A interpelada quedara perplexa. Pedia socorro e recebia conselhos?
Sentindo-se incompreendida, voltou a dizer :
– Rogo, por amor de Deus, auxiliardes meu esposo, no concernente às
obrigações doutrinárias.
– Joaquim não as tem esquecido – esclareceu o orientador. – De há muitos
anos se vem ele revelando mordomo fiel. Responsável por numerosas famílias
de empregados que o estimam, trata os interesses de todos com justiça e
honestidade. Não o deixes sem amparo afetivo, em tarefa tão grave. Porque
não atenda diariamente a problemas de ordem religiosa, no que toca a letras
e cerimônias, não quer dizer que permaneça desamparado de Deus. Entende-se
ele com o Pai, no altar da consciência reta, quando organiza os serviços de
cada dia, proporcionando trabalho e remuneração aos operários do seu
círculo, segundo os méritos e necessidades de cada um.
– Não estou eu, porém, ao serviço da caridade? pergunta Dona Laurentina,
extremamente surpreendida.
– Sem dúvida, e por isso Jesus não te desampara a alma sincera. Entretanto,
existem problemas que não deveriam passar despercebidos. Já observaste que,
antes da caridade, permanece a primeira caridade?
Dona Laurentina esboçou o gesto de quem interroga sem palavras.
– A primeira caridade da dona de casa – continuou o mentor delicadamente – é
atender ao lar; a da esposa é ajudar o companheiro; a da mãe é amamentar e
nortear os filhos. Sem isso, o trabalho do bem não seria completo.
Fundamente admirada e sem ocultar o desapontamento que lhe ia nalma, a
senhora Cardoso objetou:
– Mas o próprio orientador de nossas reuniões me aconselhou o
desenvolvimento, sempre desejei atender a benefício dos que sofrem nas
trevas e, por isso, tenho tentado o desabrochar de minhas faculdades
mediúnicas...
– Quando o amigo espiritual te aconselhou desenvolvimento, procedeu
sabiamente. Todos precisamos desenvolver sentimentos nobres, compreensões
justas, noções santificantes. Quanto a faculdades psíquicas, é indispensável
considerar que toda criatura as possui, em maior ou menor grau. Há, sim,
trabalhadores com tarefas definidas, nesse particular; no entanto, não podem
fugir à espontaneidade, como não escapaste à missão de mãe. E olvidaste,
porventura, que ser mãe é ser médium da vida? Ignoras que o lar constitui
sessão permanente, onde a doutrinação e a caridade com os filhos pedem, às
vezes, sacrifício secular? Não abandones a cooperação de amor junto às
amigas do mundo, prossegue servindo aos semelhantes, dentro das
possibilidades justas, alivia o sofrimento dos que choram no plano
invisível, mas não esqueças a reunião permanente da família, onde tens
evangelizações e testemunhos, a todos os minutos do dia e da noite. Para
poder cooperar nos campos imensos da esfera visível e invisível é preciso
saber cultivar o canteiro da obrigação própria. Volta, minha amiga, e que
Deus te abençoe.
Dona Laurentina acordou assombrada. Radiosa alegria estampara-se-lhe no
semblante. Num transporte de júbilo contou ao marido a curiosa ocorrência.
Ele abraçou-a contente e exclamou :
– Agora, interessa-me de fato essa nobre doutrina. Nunca julguei que
pudessem existir Espíritos tão sábios e tão bons.
Por: Humberto de Campos, Do Livro: Reportagens e Além Túmulo, Médium: Francisco Cândido Xavier
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