Maria, por Auta de Souza
Encontro Singular
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- Escute, moço... Se é verdade que o senhor escreve para a Terra, conte o meu caso, amparando alguém...
A observação procedia de um rapaz desencarnado, em deplorável situação num vale de suicidas.
O seu corpo, que se adensava, pesado e escuro, se retorcia, qual se estivesse fixado em agitação permanente, e, na garganta, se lhe viam arroxeadas feridas, alentadas decerto pelos pensamentos de angústia a lhe repercutirem, constantes, na forma atormentada.
Percebi-lhe a condição de enforcado e diligenciei colocá-lo à vontade:
- Fale, meu irmão, quero ouví-lo e aprender.
E o jovem, desenfaixado do envoltório físico, desmanchou-se em agoniadas recordações:
- Sabe?... Fui no mundo uma vítima do copo... Tudo começou numa festa... Lembro-me... Um convite inocente... Brincadeira... Um colega abeirou-se de mim com um frasco de bebida licorosa... Em seguida, a intimação amiga: um trago, só um trago... Recusei... Não tinha hábito... Em derredor de nós a roda alegre e expectante... “Então, você – zombeteou o companheiro sarcástico -, então você é dos tais... Um maricas... Filhinho da mamãe... Que faz você com as calças?...” Ignorava que aceitar um desafio desses era perigoso para mim... Os outros bebiam e gargalhavam... Acabei aderindo... Engoli uma talagada, outra e mais outra... Depois, a cabeça zonza e o prazer esfuziante... No dia seguinte, a necessidade do aperitivo... E, dos aperitivos, passei à bebedeira inveterada... Alfaiate bem pago, a breve trecho comecei a deteriorar-me em serviço... Erros, faltas, pileques, ressacas... Terminadas as tarefas cotidianas, trocava o lar pelo bar... E sempre o quadro lastimável, noite a noite... Amigos me apoiando até a casa e, na porta, a cansada mãezinha a esperar-me... Constantemente, a mesma voz doce, insistindo e abençoando... “Meu filho, não beba! Não beba mais!...” Minha reação negativa nunca falhava... Esbravejava, ameaçava, premindo-lhe os braços trêmulos... Na manhã imediata, os remorsos e as promessas de corrigenda e reajuste... Em sobrevindo a noite, porém, novas carraspanas e disparates... Em várias ocasiões, ao despertar, surpreendia pratos e copos quebrados e a informação estranha de que fora eu o culpado... Estivera em pavoroso delírio, perpetrando desatinos e violências... Aborrecia-me, arrependia-me... No entanto, a sede de álcool sempre mais forte... As ocorrências infelizes se sobrepunham umas às outras, até que, um dia, acordei no cárcere... Oh! porquê? Porque a prisão? Horrorizou-me a resposta do guarda... “Você é um assassino”... Eu? Um assassino?... E ele: “sim, você, “seu bêbado”, você matou”... Solucei, esmagado de sofrimento... O peito parecia rebentar-me e gritei: “meu Deus, meu Deus, que será de minha mãe?!... Aí, veio a revelação terrível: “foi ela própria que você destruiu... sua mãe, sua vítima”... Não acreditei... Pedi provas... Levado à residência sob a custódia de alguns soldados, ainda pude vê-la cadaverizada na urna... Mostrava na garganta os sinais de estrangulamento... Em torno de nós, as tetemunhas... Os que me haviam visto de perto com os dedos cravados na carne materna, em momento de insânia... Ajoelhei e gritei debalde... Recolhido à cadeia, positivamente dementado, aguardei a noite alta e, aproveitando algumas tiras de cobertor, enforquei-me... Desde então, sou um farrapo que vive, uma chaga que pensa... Se minha história triste pode servir a benefício de alguém, fale dela aos outros, aos que se acham no caminho terrestre, na bica da invigilância ou do desespêro...
Anotei, ali mesmo, o episódio amargoso que alinhavo nesta crônica e deixo o relato, com as próprias palavras do desventurado protagonista, em nossa apresentação do assunto, para estudo e reflexão dos amigos reencarnados que porventura nos leiam.
Entretanto, recordando o meu próprio ceptícismo no tempo em que estadeava o enxudioso uniforme carnal, entre os homens do plano físico, não estou muito certo de que alguém possa realmente acreditar em nós.
Por: Irmão X, Do livro: Estante da Vida, Médium: Francisco Cândido Xavier
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