Ensinar, por Espíritos Diversos
Narrador Apenas
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– Terminara a leitura – continuou Armando Botelho, na palestra eventual, em casa dos Velosos – e entrei a meditar profundamente, quando o vulto penetrou no quarto, de leve. Fixei-o surpreendido e reconheci minha mãe a mostrar-me o sorriso meigo de outro tempo.
Não disse palavra, nem se aproximou muito de mim; todavia, pude identificar-lhe as mãos rugosas, o olhar carinhoso e vivo, os cabelos brancos.
Enquanto o narrador distinto se calava bruscamente para acender outro cigarro, a nobre senhora interrogou:
– Mas, se conseguiu verificar fenômeno tão belo, como pode duvidar da comunicação dos Espíritos desencarnados?
Revelando maneiras apuradas no trato social, Botelho utilizou o cinzeiro, sorriu discretamente e sentenciou:
– Apesar disso, tenho minhas dúvidas. Quem me diz que a visão não era reflexo de minha própria mente? Durante o dia eu pensara em minha mãe, fitara retratos, relera velhas cartas dela. Nada impossível que meu subconsciente padecesse determinadas excitações. Aliás, estes casos são comuns. Nosso problema psíquico é mais transcendente do que se pode imaginar. A Ciência de hoje relaciona observações indiscutíveis.
– Não compreendo bem – atalhou o respeitável Libório, hóspede da casa –; neste passo, o subconsciente nos levará a ilações mais inacreditáveis e mais difíceis de exame.
– Sim – voltava Botelho, evidenciando falsa preocupação –, precisamos cuidado na investigação de fenomenologia tão extensa e complicada. Além disso, possuímos recursos ignorados e é possível enganarmo-nos a nós mesmos.
– Concordo – explicava o interlocutor, judiciosamente –; todavia, em qualquer esforço é indispensável fugir ao absurdo teórico.
A conversação chegava a termo sem que ninguém estivesse de acordo. Armando não cedia. Contudo, ao transpor a porta, depois das despedidas, surgiam comentários discretos.
– Se Botelho é favorecido com tamanha proteção espiritual, por que não se modifica para melhor? – dizia a Sr. Peçanha recostada no sofá – é incrível que homens, assim, se entreguem a tantos escândalos na vida particular.
– Ora, ora – alegava o marido, instalado na cadeira em frente –, por que se deixará ele incomodar com Espíritos, quando tem vida folgada e dinheiro para esbanjar nos cassinos de luxo? A mulher ainda agora recebeu nova herança. Nessas condições, qualquer homem, ainda que visitado pela Corte Celestial, preferirá falar em ciência e faculdades ocultas.
Retrucava, entretanto, a companheira tomada de boa intenção:
– Nem tanto. Há capitalistas generosos, ricos devotados ao bem dos que sofrem. Conhecemos amigos abastados, convertidos inteiramente a Jesus.
O marido tomou uma expressão brejeira e, arrancando riso dos presentes, respondeu sem hesitar:
– Mas estes, Raimunda, são os missionários.
Continuaram a destilar o fel da maledicência.
De alguma sorte, porém, Armando Botelho fazia jus a referências tão ásperas. Desde muito tempo, a velha e amorosa mãe o chamava do plano invisível. Intimamente, ele reconhecia o caráter real das manifestações, mas, amolecido pelo dinheiro, assumira condenáveis atitudes mentais. Se o coração começava a ceder, os vícios falavam mais alto dentro dele e punham-no em fuga, através de noitadas alegres, onde o jogo, o vinho e as mulheres desenhavam-lhe quadros deliciosos. Ótimo narrador, prendia os ouvintes com a fraseologia espirituosa, relatando fenômenos que o rodeavam; todavia, se algum amigo buscava incliná-lo a ilações religiosas, Botelho se revoltava. Citava cientistas e filósofos, observações e experiências. À religião que consagra e define responsabilidades, preferia sempre a vaidade, que liberta os instintos inferiores.
Comparecendo, certa vez, a humilde reunião espiritista, foi surpreendido com pequena mensagem maternal. Aquela, que lhe fora carinhosa genitora no mundo, pedia-lhe caminhasse na senda do bem, procurando a inspiração de Jesus e valendo-se da fé na estrada humana ; e contudo, enquanto os amigos se rejubilavam, Botelho pôs-se em guarda e declarou :
– Não posso aceitar como idôneo este documento. Os espiritistas costumam precipitar conclusões. Quem afiançará que tudo não passa de alucinação telepática? Pensei na querida morta insistentemente. Não se daria o caso de transmissão de cérebro a cérebro? Além disso, a página é excessivamente impessoal. Minha mãe não se identifica, não se refere aos manos, aos netos, a letra não é expressão fiel.
Debalde, os amigos desapontados tentavam explicar; em vão procurou o médium relatar observações próprias.
– Tudo fragmentário, discutível... – rematava o negador renitente.
Foram inúteis detalhadas elucidações. Botelho não aceitou. Chegado a casa, notificou à esposa a ocorrência da noite, objetando-lhe ela docemente:
– Será útil prosseguir observando. Creio que sua mamãe compartilha dos meus cuidados. A mensagem requer atenção ao bem. Não será um apelo justo? Não representará amoroso convite a que deixe você os falsos amigos e o hábito absorvente do jogo? Temos filhinhos requisitando dedicação e vigilância. Essa página tem, pois, extraordinário valor a meus olhos. Ignora talvez que venho recebendo cartas anônimas denunciando seu proceder, no que se refere a mulheres viciadas. Não costumo tomar conhecimento de qualquer insulto ao lar; no entanto, acredito que deverá precatar-se quanto a companhias menos dignas, ressalvando o próprio nome.
Revelavam essas palavras tamanha generosidade e delicadeza que o esposo se calou, desapontado e vencido.
O acontecimento, porém, não lhe modificou as atitudes.
Depois de algum tempo, hospitalizou-se para tratamento de inesperada pneumonia. Ameaçado de morte, Botelho declarou ter fé na intervenção do plano espiritual, implorou a assistência materna, prometeu vida nova à companheira, mas, quando se restabeleceu, não sabia falar senão de saudades dos companheiros levianos, e regressou ao cassino, mais escravizado que nunca.
Continuaram os fenômenos e apelos indiretos, e, todavia, ele prosseguiu examinando teorias científicas mais novas, a fim de reforçar argumentação negativa nas discussões habituais.
Transcorridos dez anos após a estada na casa de saúde, voltou a experimentar violentas dores no pulmão.
Nova profissão de fé, ante ameaças de morte; novas promessas à companheira paciente e humilde. Restabelecido, porém, não mais se contentou com as extravagâncias noturnas e incluiu as horas do dia nas dissipações costumeiras.
Apesar de tudo isso, aprimorava cada vez mais as qualidades de narrador fascinante e distinto.
Mais de vinte anos haviam passado sobre a palestra em casa dos Velosos, quando Botelho os encontrou em festividade social.
– Sempre o mesmo! – exclamou o amigo, apertando-lhe as mãos.
– Ainda bem que o vemos de boa saúde! – disse a senhora, gentilmente.
Botelho não disfarçou o contentamento de abraçá-los e, qual acontecia noutro tempo, à conversação caiu no terreno amplo do Espiritismo. O perdulário relatou as últimas experiências, referindo-se mais vigorosamente à subconsciência e ao animismo. Contemplaram-no os Velosos, extremamente desalentados, reconhecendo tratar-se de caso perdido, e sorriram ambos, murmurando evasivas.
– Ainda anteontem – prosseguia Botelho, loquaz – sonhei que me encontrava em largo campo de luz. Avistei, na paisagem maravilhosa, uma árvore de cujos ramos pendia um único fruto amadurecido. Notei que minha mãe se aproximou, tentando colhê-lo, mas, quando o esforço ia em meio, apareceu terrível monstro e o fruto, grande e belo, como se houvera criado impulso próprio, lançou-se às garras do animal, em vez de se deixar colher por minha mãe.
Sorriram os amigos, entreolhando-se em silêncio.
– E imaginem que minha mulher – continuou ele – teve a coragem de interpretar o sonho, colocando-me no papel do fruto que, apesar de maduro, preferiu a companhia do monstro ao aconchego maternal. Já viram contra-senso tal?
Veloso, entretanto, fugindo a discussões estéreis com quem devia saber muito mais que ele mesmo, pelas experiências próprias, acrescentou com ironia intencional :
– As esposas são assim, enérgicas e severas, pelo muito amor que nos consagram. Não se incomode, porém.
No seu caso, creio que deve recorrer a Freud, com bastante atenção.
– Isso mesmo, tal qual – concordou o interlocutor entusiasmado –, até que enfim vocês também chegaram onde eu queria.
Dai a semanas, contudo, o extravagante Botelho era recolhido à pressa ao hospital, abatido e agonizante.
Desta vez, era o edema pulmonar, irremediável. Nada valeram cuidados médicos e lágrimas da família.
Enquanto o corpo esfriava lentamente, gritava o excelente narrador, sequestrado agora aos olhos e ouvidos da esposa e dos filhinhos carinhosos :
– Minha mãe, ah! minha mãe!... Valei-me por amor de Deus! Ajudai-me neste angustioso transe. Creio agora na vida triunfante e imortal!...
A genitora, todavia, não apareceu.
E ante o olhar esgazeado do infeliz, surgiu devotado enfermeiro da Espiritualidade que respondeu solicito :
– Acalma-te para exames necessários. Não chames tua mãe. Depois de imensos sacrifícios, esperando mais de trinta anos pela resposta de tua alma iludida e ociosa, ela mereceu a bênção de Deus em tarefa superior e diferente. Como vês, Botelho, agora é muito tarde...
Por: Irmão X, Do livro: Reportagens de Além Túmulo, Médium: Francisco Cândido Xavier
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