Ensinar, por Espíritos Diversos
O Problema da Violência
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Chamamos Civilização do Espírito aquela em que os poderes espirituais regerão a vida social. Para isso é necessário que a sociedade seja constituída por seres morais, criaturas formadas nos princípios da moral-consciencial. Essa moral corresponde ao que Hubert considera as exigências da consciência. Não se trata, pois, de um conceito de moral metafísica, de uma formulação utópica de sonhadores. Mesmo que o fosse, a definição da utopia por Karl Mannheim nos socorreria quanto à sua validade. Se as utopias são, como quer Mannheim, percepções antecipadas de realidades futuras - possibilidade provada pelas pesquisas parapsicológicas - nem assim estaríamos tratando de tese'>hipóteses vazias. Mas quando aludimos à consciência estamos pisando na terra e não olhando para o céu. A consciência é um dado positivo, uma realidade antropológica e social que ninguém se atreveria a contestar. Ela rege a nossa vida, o nosso comportamento nas relações humanas e por isso se projeta de maneira inegável no plano do sensível.
Sabemos que a consciência varia de graus no tocante à sua estrutura e à sua coerência. E sabemos também quais os perigos concretos de uma consciência imatura, ainda não suficientemente definida, e portanto frouxa ou incoerente, contraditória, que pode produzir catástrofes no âmbito da sua influência ou do seu domínio. As variações da moral entre os grupos humanos e as próprias civilizações decorrem mais da posição da consciência dominante na sociedade do que dos fatores mesológicos e suas conseqüências econômicas. No plano religioso a consciência é um fator determinante da realidade religiosa. A consciência judaica de Saulo de Tarso fez dele um perseguidor sanguinário dos cristãos primitivos, o lapidador cruel de Estêvão. Mas, ao ajustar a sua consciência aos princípios cristãos, ele se transformou no Apóstolo dos Gentios e no maior propagador do Cristianismo.
As exigências da consciência são sempre as mesmas em todos os homens. As variações de graus e de coerência decorrem do processo de maturação e das condições de meio e educação. A consciência amadurece na proporção em que as experiências vão revelando ao espírito o seu anseio latente de transcendência. A vontade de potência, de Nietzshe, é o primeiro impulso que leva o homem, ainda na selva, a querer sobrepujar os outros, elevar-se acima das condições gerais do meio. Esse impulso se prolongará no processo evolutivo. O homem se envaidece com a sua capacidade de subjugar os outros, de mandar, de impor medo, respeito, submissão aos demais. Sua consciência se abre no plano individual, fechada nos limites de si mesma. É o reconhecimento do seu poder que naturalmente o embriaga e o levará a excessos perigosos. Mas na proporção em que os liames do clã se desenvolvem, o parentesco, a simpatia e as afinidades se revelam, a embriaguez do poder vai sendo atenuada, contida pela percepção dos limites inevitáveis. Depois, o esgotamento progressivo das forças físicas e o perigo das doenças, das competições com iguais ou mais fortes, e por fim a certeza da morte irão abatendo a sua arrogância. Nas reencarnações sucessivas essas experiências se renovam, mas o impulso de transcendência se acentua, levando-o, a procurar outros meios de superação: o poder social, a hipocrisia, a estratégia das posses materiais e das posições de mando. Só lentamente, ao longo do tempo, sujeito às reações que o enredam em situações difíceis, muitas vezes torturantes, sua consciência começa a abrir-se para o respeito aos direitos dos outros. A interação social, na recíproca das obrigações e das necessidades, na transformação dos instintos em sentimentos, irá pouco a pouco despertando-o para novas dimensões conscienciais.
A violência do homem civilizado tem as suas raízes profundas e vigorosas na selva. O homo brutalis tem as suas leis: subjugar, humilhar, torturar, matar. O seu valor está sempre acima do valor dos outros. A sua crença é a única válida. O seu modo de ver o mundo e os homens é o único certo. O seu deus é o único verdadeiro. Só o que é bom para ele é bom para a comunidade. Os que se opõem aos seus desígnios devem ser eliminados pelo bem de todos. A violência é o seu método de ação, justificado pelo seu valor pessoal, pela sua capacidade única de julgar. Tece ele mesmo a trama de fogo do seu futuro nas encarnações dolorosas que terá de enfrentar. As religiões da violência fizeram de Deus uma divindade implacável e os livros básicos de suas revelações estão cheios de homicídios e genocídios em nome de Deus.
Não obstante, misturam-se às ordenações violentas estranhos preceitos de amor e bondade. São as lições de consciências desenvolvidas lutando para despertar as que, endurecidas no apego a si mesmas, asfixiam os germes do altruísmo nas gamas do egoísmo. É um espetáculo dantesco o de uma alma vigorosa dotada de intelecto capaz de entender as suas próprias contradições, mas empenhada em negar a sua condição humana, rebaixando-se aos brutos ao invés de buscar a elevação moral a que se destina. Nos momentos de transição, como este que estamos vivendo,
a violência desencadeada exige a oposição vigorosa e sacrificial dos que já atingiram o desenvolvimento consciencial da civilização. A cumplicidade com as práticas de violência, por parte de consciências esclarecidas, retarda a evolução coletiva e rebaixa o cúmplice a posições indignas. O mesmo acontece no tocante à aceitação de princípios errôneos por conveniência. O espírito se coloca então em luta consigo mesmo, negando o seu próprio desenvolvimento consciencial e ateando em si mesmo a fogueira dos remorsos futuros.
A Civilização do Espírito se toma, assim, o resultado de um parto doloroso. Mas, como todos os partos, tem de ser feito. E se acaso for possível o aborto, a civilização se fechará sobre si mesma e todos os responsáveis mergulharão com ela nas trevas da miséria moral. As fases de transição, na evolução dos mundos, são também fases de julgamento individual das criaturas que os habitam. Daí o mito do Juízo Final, em que todos serão julgados. Mas não haverá um Tribunal Divino nas nuvens, porque esse tribunal está naturalmente instalado na consciência de cada indivíduo. A presença do julgador é onímoda e fatal, porque cada qual será juiz implacável e inevitável de si-mesmo.
A agonia das religiões é a agonia de um mundo. Por isso a Tema inteira participa dessa mesma agonia. A queda dos deuses mitológicos do mundo clássico foi também a queda dos grandes impérios. Em vão César procurou desligar-se de Júpiter e aceitar o Deus Único. A conversão do Império foi a sua própria morte. A Idade Média procurou restabelecer o reino da violência em nome de Jesus. Durou um milênio, pois a integração dos bárbaros na ordem cristã exigia uma reelaboração demorada e um reajuste penoso das contradições culturais. O Renascimento marcou o advento do que parecia ser, na verdade, uma civilização cristã. Mas os resíduos da violência continuaram, a fermentar nas novas estruturas sócio-culturais. A prova histórica de que a carga de violência era enorme está hoje aos nossos olhos, na explosão de violências em todos os níveis do mundo contemporâneo. Nossa esperança é a de que essa explosão seja a catarse final. O homo brutalis vai desaparecer. Mas para isso é necessário o despertar de novas dimensões na consciência atual. Não será sustentando e justificando as estruturas religiosas envelhecidas, submissas às ordenações do passado bíblico, que facilitaremos o advento da nova era. Muito menos pela negação da própria essência, do homem, através de ideologias materialistas. A busca da intimidade pessoal com Deus, em termos fantasiosos, ou a negação de Deus em nome de uma razão ilógica são formas contraditórias de asfixia da consciência. A rejeição do Evangelho ou a manutenção de sua interpretação sectária equivalem igualmente à negação dos valores espirituais do .homem. A estrutura moral da consciência está delineada de maneira indelével nas páginas do ensino moral de Jesus. Temos de aprofundar o seu estudo e procurar aplicá-lo em nossa vivência social. A civilização Cristã vai sair agora do tubo de ensaio, concretizar-se na forma real de uma Civilização do Espírito, em que os princípios espirituais se encarnarão nas normas de conduta, nas formas de comportamento do Novo Homem.
O problema das relações humanas, colocado em forma de etiqueta nas velhas civilizações nobiliárquicas do Oriente e do Ocidente, formalizado ao extremo nos tempos feudais, e convertido em protocolo de conveniências no mundo moderno e contemporâneo, terá de voltar ao ponto de partida dos ensinos e dos exemplos de Jesus. A regra áurea do amor prevalecerá num mundo regido pela moral consciencial. Porque a primeira exigência da consciência humana é a do amor ao próximo, desprezada e amesquinhada nas sociedades mercenárias a ponto de levar-nos ao seu contrário - o ódio, essa cegueira do espírito, que gera e sustenta a violência no mundo.
O pragmatismo das sociedades contemporâneas coisificou o homem, o que vale dizer que o nadificou no plano moral. Pior do que a nadificação pela morte, da teoria de Sartre, é essa nadificação em vida que reduz a criatura humana a objeto de uso. O homem retorna a condição dos instrumentos vocais de Cícero, um instrumento que fala. Pode ser incluído entre os úteis ou amanuais de Heidegger, objetos manusiáveis. O public-relations de hoje é o fâmulo medieval aprimorado pela técnica, domesticado para sorrir e curvar-se em todas as ocasiões, pois o que importa é sempre o lucro, o que vale é a relação social em termos de vantagens, sempre que possível, pecuniárias. Esse aviltamento total do homem abriu as comportas da violência represada debilmente pelas barreiras artificiais da civilização. Como estamos vendo no panorama mundial da atualidade, com exemplos gritantes diariamente divulgados pelos meios de comunicação, a besta-fera das selvas arrombou as jaulas convencionais e tripudia sobre a fragilidade humana.
Contra essa realidade exasperante de nada valem os sermões, as pregações, as ladainhas e outras preces labiais. O mesmo indivíduo que se ajoelha diante das imagens, nos templos suntuosos, volta ao seu posto de mando para ordenar torturas canibalescas. Está certo que Deus o aprova, pois age em defesa da civilização cristã, aviltando aqueles pelos quais o Cristo morreu, segundo lembrou Stanley Jones. No começo do século, Léon Tolstoi já advertia que estamos numa era de nova antropofagia, então requintada pelas técnicas modernas. Hoje, na era tecnológica, os instrumentos de opressão, tortura e aniquilamento do homem atingiram a máxima perfeição diabólica. Tudo isso porque? Porque a deformação da mente e o aviltamento da consciência desumanizou o homem.
Seria loucura responsabilizar unicamente as religiões por essa calamidade. Mas seria hipocrisia querer isentá-las de culpa. Elas se apegaram à matéria em nome do espírito e asfixiaram este em suas estruturas pragmáticas. Cabe-lhes pelo menos metade da culpa, pois que se fizeram mestras e orientadoras da civilização, participando ativamente dos maiores desmandos através dos séculos, quando não os dirigia. Estatizando-se ou não, todas elas trocaram o mandato divino pelos poderes de César. E se não se aniquilaram mutuamente, não foi por piedade, mas porque jogaram habilmente a sua sorte sobre a túnica do crucificado e os dados romanos favoreceram a todas. Apesar dessa voracidade mundana, almas valentes como a de Lutero, humildes e piedosas como a de Frâncisco de Assis, irredutíveis como a de John Huss, límpidas como a de Maria DAgeada sacrificaram-se para tentar salvá-la e insuflar-lhes a seiva cristã de seus novos exemplos.
Os mártires da fé não foram apenas perseguidos e esmagados pelos ímpios. Dentro de suas próprias confissões religiosas, nos calabouços medievais que refletiam o Inferno na Terra, e até mesmo no mundo moderno, apesar dos trágicos exemplos históricos, em nações profundamente marcadas pelo fogo do fanatismo religioso, milhares de mártires continuaram sofrendo as ameaças e os castigos do Deus bíblico implacável, através de seus estranhos e temíveis capatazes. Ainda não surgiu, infelizmente, o gênio da Psicologia que deverá, mais cedo ou mais tarde, realizar a análise assombrosa dos complexos sem nome de misticismo, sadismo e barbárie que Freud apenas aflorou em suas pesquisas da libido. Será um balanço apocalíptico da escatologia das religiões da violência.
Não proponho estes problemas em tom de acusação, mas de análise. Os maiores mártires, na verdade, foram os próprios carrascos, que aviltaram primeiro a si-mesmos, condenando-se perante o tribunal da consciência, cujas auto-sentenças brotam como labaredas das próprias entranhas do criminoso, digno de piedade e perdão como todas as criaturas humanas. Minha intenção é apenas a de prevenir, sacudir e acordar os que continuam errando, na vaidosa ilusão de uma investidura divina contrária aos princípios fundamentais do Evangelho. A imortalidade do ser é a sua própria e irreversível condenação, ante as leis de Deus inscritas em sua consciência. A vantagem do Espiritismo, entre todas as doutrinas filosóficas do nosso tempo, é a de colocar os problemas do homem, mesmo no campo religioso, em termos de razão e naturalidade, eliminando os resíduos do sobrenatural que pesaram esmagadoramente sobre o passado, sem cair no ceticismo e no gnosticismo'>agnosticismo. Essa posição suis generis do Espiritismo permite-lhe preparar o homem atual para uma existência normal e digna no futuro, desde que os espíritos, tão sobrecarregados de heranças religiosas deformantes, não venham a cair nas mesmas e nefastas ilusões da investidura divina e da institucionalização hierárquica das religiões da violência. Não escrevi este ensaio com fins proselitistas, pois uma doutrina aberta, sem finalidades salvacionistas, fundada em métodos científicos de observação e pesquisa, como o próprio Kardec afirmou, não é uma caçadora de adeptos. O que lhe interessa não é combater as religiões ou tirar de suas fileiras os que nelas se sentem bem, mas apenas oferecer aos homens de bom-senso uma visão realista e por isso mais ampla e mais profunda do homem e do seu destino no espaço e no tempo. Só essa compreensão racional e superior do Universo, em que o homem aparece integrado nas leis naturais, poderá modificar a mentalidade confusa e contraditória do nosso tempo e preparar-nos para a Era Cósmica, na qual a Terra só poderá entrar com a Civilização do Espírito. Nessa civilização, que será a única digna dessa classificação, a única civilização autêntica, os homens estarão investidos do único mandato realmente divino (considerando-se o divino como uma categoria superior à do humano) que decorre das exigências de sua consciência moral.
René Hubert interpreta a Educação, no seu Traité de Pedagogie Generale, como um processo que tem por finalidade estabelecer na Terra a solidariedade de consciências, da qual resultará uma estrutura política e social que ele chama de República dos Espíritos. É essa República, em que a rés não se limita às coisas materiais, mas se estende sobretudo às consciências, proclamando o primado do espírito no planeta, que o Espiritismo pretende atingir pelo trabalho e a compreensão dos homens. Porque a tarefa é nossa e não de entidades mitológicas de qualquer espécie.
Se insisto na tônica do Cristianismo não é por menosprezo às demais correntes de pensamento religioso, mas porque a experiência histórica, apesar de todos os pesares já anteriormente referidos, prova que somente ele mostrou-se capaz de reformular o mundo em sua globalidade. As energias espirituais e a orientação racional do ensino moral do Cristo, encerrado no complexo de mitos dos Evangelhos, são, segundo entendo, os elementos que podem e realmente já estão balizando o futuro da humanidade terrena. O importante é chegarmos a esse futuro pelos meios adequados, com o mínimo de conflitos criminosos e o máximo de compreensão racional dos nosso objetivos. Como observou Gandhi em suas memórias, os meios que nos podem levar à verdade e à dignidade só podem ser verdadeiros e dignos. Esses meios não precisam da justificação dos fins, pois justificam-se por si-mesmos.
Por: Herculano Pires, Caso tenha ou possua, envie-nos a referência desse texto.
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