Maria, por Auta de Souza
O Drama de André
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Falava-se, entre nós, dos problemas da educação com liberdade irrestrita, quando um dedicado servo do Evangelho observou com justiça :
– Crianças sem disciplina e jovens sem orientação sadia constituem o gérmen dos imensos desastres humanos. A Civilização e o Estado podem apresentar os seus prejuízos, visto serem organizações perfectíveis nas mãos de homens imperfeitos ; contudo, sem a sua influência, reverteriam à animalidade anterior. Assim ocorre, quanto ao lar e à educação doméstica. A família tem o seu quadro de lutas ásperas; entretanto, se lhe retirarmos o aparelhamento, tudo voltará às tribos sanguinárias doa tempos primitivos.
– Todavia, há quem coloque esse problema em plano secundário – retrucou um amigo –, a educação com os instintos emancipados tem os seus adeptos fervorosos, mesmo nos círculos do Espiritismo...
– Menos na esfera do Espiritismo cristão – atalhou o mentor respeitável – ; nas atividades meramente fenomênicas, sem qualquer propósito religioso, encontram-se companheiros obcecados por essa ilusão. Empolgados pela luz e pela liberalidade da doutrina dor'>consoladora, sem aderirem aos sentimentos de Jesus, costumam andar embriagados nos enganos brilhantes. Não percebem os perigos amargos que lhes sitiam a vida. Desinteressam-se da educação dos filhos mais tenros, com grave dano para o futuro do grupo familiar. No entanto, bastariam ligeiras considerações para o reconhecimento do erro clamoroso. Por que confiaria Deus determinados filhos a essas ou àquelas organizações paternas, se não fosse necessária semelhante cooperação no mecanismo da iluminação ou do resgate? O Eterno proporciona o doce licor do esquecimento às almas culpadas ou oprimidas, e mandou que se criassem os períodos da infância e da juventude, na Terra, a fim de que os senhores do Lar se valham do ensejo para a divina semeadura da bondade e do amor, visando ao trabalho da consciência retilínea do porvir. Para que serviriam, de outro modo, os pais humanos, se abdicassem a posição de sentinelas, entregando os filhos às tendências inferiores de ontem? Não seria condenar o instituto doméstico a um reduto de prazer vicioso?!
Tais interrogações ficavam no ar. Ninguém se atrevia a intervir no assunto, quando o nosso amigo tecia comentários tão fascinantes. Observando as nossas disposições mais íntimas, o generoso instrutor continuou :
– Aludindo à cegueira de alguns dos nossos irmãos do mundo, tenho um caso doloroso em minhas relações pessoais.
A pequena assembléia colocou-se à escuta, evidenciando justificado interesse.
– No fim do século passado – prosseguiu o devotado servo do Cristo –, quando os ideais espiritistas se alastravam no país, em modesto vilarejo do norte, um negociante honesto foi dos primeiros a demonstrar simpatia pelos princípios novos. André fora rubro seguidor do Positivismo, e, ainda sob a sua influenciação, penetrou os umbrais da Doutrina, intoxicado por fortes ilusões no terreno da Filosofia transcendente. Bom discutidor, comentava sempre a vasta situação do mundo, tecendo referências encomiásticas à virtude, à fraternidade e à liberdade. Sua inteligência não era um diamante lapidado nos bancos acadêmicos ; entretanto, apresentava, em suas características, a espontaneidade e a sutileza que assinalam o caboclo brasileiro. Não era rico, mas sua casa era farta e feliz. As remunerações eventuais do comércio ofereciam-lhe vantagens suficientes. Dois pequeninos enriqueciam-lhe o lar; no entanto, por mais que a esposa insistisse, a fim de que tivessem as necessidades espirituais atendidas, quanto ao problema religioso, André zombava, murmurando :
– Nada disso! meus filhos hão de crescer sem tais prejuízos. Quero vê-los distante dos preconceitos dogmáticos de todos os tempos. Problemas religiosos cheiram a catecismo. Acaso ignoras que esses enganos já foram relegados aos clérigos caducos?
– Sim – explicava a companheira sem irritação –, compreendo teus escrúpulos, no sentido de preservar os meninos da exploração e do abuso do nome de Deus ; todavia, não podemos eliminar as necessidades justas da alma. Já que não permitiremos a influência dos padres junto dos nossos filhinhos, precisamos criar um ambiente de ensino doméstico, onde aprendam conosco a cultivar o respeito e a obediência ao Altíssimo.
André exibia um risinho vaidoso e asseverava:
– Esquece as velharias, mulher! A razão resolverá isso. A mentalidade de agora reclama independência. Nossos filhos não serão escravos das disciplinas impiedosas que nos torturaram a infância.
– Mas – voltava a esposa, sensatamente – se Deus nos transformou em pais, neste mundo, é para que sejamos orientadores dedicados de nossos filhos. Quando não vigiamos, André, a liberdade pode transformar-se em libertinagem.
O marido parecia impressionar-se, momentaneamente, com as respostas; contudo, dava de ombros, sem maior consideração. E o tempo foi passando. Na obediência ao regime paterno, os rapazelhos cresceram voluntariosos e rudes. Somente abandonaram o curso primário após os quinze anos, em razão da ociosidade e indisciplina. Empenhavam-se, comumente, em atritos ásperos, dos quais apenas se afastavam, em sangue, depois de longas súplicas maternais. Odiavam os livros sérios, mas estavam sempre atentos às anedotas deprimentes.
Por essa época o genitor começou a entender as dificuldades da situação, lamentando a leviandade de outros tempos, quando descurara a educação religiosa e moral dos filhos que Deus lhe havia confiado. Era, porem, muito tarde. Léo e Oscar, os dois rapazes, guardavam uma observação revoltante para cada conselho paternal. O nosso amigo tentou a internação dos jovens rebeldes em estabelecimento disciplinar, mas foi em vão. Procurou localizá-los em serviço honesto; entretanto, ambos eram admitidos para serem dispensados quase imediatamente. Ninguém lhes tolerava os costumes e as palavras torpes.
Certa vez, quando o comerciante chegava ao lar, em noite sombria, percebeu acalorada discussão no interior doméstico. Mais alguns passos e defrontou a cena humilhante. Em atitude ingrata, os filhos espancavam a própria mãe. Na sua indignação, André buscou expulsá-los, mas a esposa interveio com a ternura de sempre.
Decorridos alguns meses, ambos os rapazes foram apanhados em flagrante de furto. Após a prisão vexa-tória, o genitor não conseguiu sofrear a revolta que lhe atormentava o coração e, não obstante as rogativas reiteradas da companheira, baniu os filhos do ninho familiar.
Alma esfacelada por desilusões tão amargas, providenciou a mudança de um Estado para outro. Vendeu a pequena propriedade comercial, as terras, os rebanhos e partiu. Entretanto, os cônjuges, apesar da união afetiva, em afinidades profundas, embora a modificação da paisagem, nunca mais se avistaram com a tranquilidade primitiva. Ensaiavam o regresso à ventura de outros tempos, mas debalde. A lembrança dos filhos ingratos
apresentava-se com as imposições da velhice, multiplicando, porém, as preocupações e as saudades.
Numa noite tempestuosa, André despertou às primeiras horas da madrugada, ouvindo forte ruído no corredor. Tomando da arma de fogo, levantou-se cautelosamente. Encaminhou-se ao cofre de madeira localizado em aposento contíguo, notando-o arrombado. Era um ladrão o visitante imprevisto. Como sombra no seio das sombras, André acompanha os passos do malfeitor e, antes que pudesse escapar, prostra-o com um tiro, quase à queima-roupa. Ergueu-se a esposa, assustada. Acendem a luz. E quando o comerciante, muito trêmulo, aproxima a lanterna do rosto da vítima que se esvaia em sangue, cruzam ambos o olhar.
– Meu pai!... meu pai!... – grita, em tom rouco, o malfeitor moribundo.
– Meu filho!... – exclamam, a um só tempo, marido e mulher, entre lágrimas de desesperação.
Era Oscar que, ignorando o novo sítio da habitação paterna, atacara a residência, nos seus velhos hábitos de pilhagem.
O narrador fez uma pausa mais longa, reconhecendo o efeito de suas palavras no ânimo geral e continuou :
– É fácil imaginar a tragédia que se seguiu. O casal não teve coragem de revelar à Polícia a verdadeira condição da vítima, entregando-se André à ação judicial, quase imbecilizado na sua dor. Sua causa, porém, era simpática. A energia de que dera testemunho livrara o vilarejo de um bandido comum. Enquanto o povo o aplaudia, o negociante chorava, angustiado. E, antes de regressar do cárcere, aconteceu o que seria de esperar. A pobre mãe, ralada pelo infortúnio extremo, entregou a alma a Deus, assistida pelas dedicações da vizinhança.
O nosso amigo estava, agora, sem ninguém.
Quanto maiores eram as esperanças de liberdade em futuro próximo, mais lastimava a própria dor. Por fim saiu da cadeia pública, ovacionado pela simpatia popular como herói.
André, no entanto, permanecia inerte, derrotado. Vendeu quanto possuía, a fim de pagar as custas da Justiça que o absolvera e tornou a partir, sem destino.
Velho, cansado, sozinho, não se sentiu bastante forte para recomeçar a luta. Noites ao relento, dias de fome, roupa em frangalhos e lá se ia, de aldeia em aldeia, vivendo da caridade comum. Parecia idiota, incapaz de qualquer reação. O tempo incumbiu-se de completar-lhe a feição de mendigo. Larga bolsa de couro à cintura, rosto hirsuto, grosseiro cajado para os caminhos ásperos, prosseguia, sem pousada certa, recorrendo à generosidade popular.
Os anos rolavam para o seu coração, em amargoso silêncio, quando, num crepúsculo de borrasca forte, o mísero velhinho se aproximou de um rio transbordante. O desventurado necessitava ganhar a outra margem, tentando o abrigo na localidade mais próxima. Um homem corpulento, de traços rudes, convida-o com um gesto mudo a tomar a canoa frágil. O pedinte aceita. O barqueiro desconhecido não cessa de fixar a bolsa, onde André recolhe os vintena da piedade pública. Enquanto isso, o desventurado ancião pousa os olhos nevoados pela velhice no seu benfeitor, que remava em silêncio. A ternura paterna volve a pintar-se no semblante sulcado de rugas. Se Léo ainda existisse, devia parecer-se com aquele homem. Olvidando todas as preocupações para recordar o filho, o desventurado não percebe os movimentos sutis do barqueiro anônimo.
Distante da margem, o remador lança um último olhar aos matagais vizinhos, amortalhados na sombra do crepúsculo e, sentindo-se sem testemunhas, avança para o mendigo miserável, arrebata-lhe a bolsa e atira-lhe o corpo na corrente tranqüila, murmurando com ironia :
– As águas não falam!... Vamos, velho imundo, uma bolsa não te pode salvar a vida!
André compreendeu, afinal : aquela voz era do filho desaparecido. Não hesitou. O sentimento de paternidade não o havia enganado.
– Léo!... Léo! meu filho!... – gritou angustiado.
Entretanto, era tarde. Ambos trocaram o supremo olhar, com estranha sensação de sofrimento e pavor, mergulhando o velhinho para sempre.
Como vêem – concluiu o narrador emocionado –, André foi indiferente à educação moral dos filhos, esquecendo-se de efetuar a semeadura da infância, a fim de construir-lhes o caráter na juventude. A experiência resultou-lhe em frutos bem amargos. Depois de eliminar, involuntariamente, um deles, acabou assassinado pelo outro.
Compreenderam, agora, o que significa educação com liberdade irrestrita?
A reduzida assembléia permanecia sob penosa comoção e ninguém ousou responder.
Por: Humberto de Campos, Do livro: Reportagens e Além Túmulo, Médium: Francisco Cândido Xavier
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