Maria, por Auta de Souza
Os Escravos
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Certo dia, preparava-se, numa das esferas superiores do Infinito, o encontro de Ismael com Aquele que será sempre caminho, verdade e vida.
Por toda parte, abriam-se flores evanescentes, oriundas de um solo de radiosas neblinas. Luzes policrômicas enfeitavam todas as paisagens celestes, que se perdiam na incomensurável extensão dos espaços felizes.
Rodeado dos seres santificados e venturosos que constituem a coorte luminosa de seus mensageiros abnegados, recebeu o Senhor, com a sua complacência, o emissário dileto do seu amor nas terras do Cruzeiro.
Ismael, porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços
fisionômicos deixavam mesmo transparecer angelical amargura.
- Senhor – exclama ele – sinto dificuldades para fazer prevaleçam os vossos
desígnios nos territórios onde pairam as vossas bênçãos dulcificantes. A
civilização, que ali se inicia sob os imperativos da vossa vontade compassiva e
misericordiosa, acaba de ser contaminada por lamentáveis acontecimentos. Os
donatários dos imensos latifúndios de Santa Cruz fizeram-se à vela, escravizando
os negros indefesos da Luanda, da Guiné e de Angola. Infelizmente, os pobres
cativos, miseráveis e desditosos, chegam à pátria do vosso Evangelho como se
fossem animais bravios e selvagens, sem coração e sem consciência.
O mensageiro, porém, não conseguiu continuar. Soluços divinos lhe rebentaram de
peito opresso, evocando tão amargas lembranças...
O Divino Mestre, porém, cingindo-o ao seu coração augusto e magnânimo, explicou
brandamente:
- Ismael, asserena teu mundo íntimo no cumprimento dos sagrados deveres que te
foram confiados. Bem sabes que os homens têm a sua responsabilidade pessoal nos
feitos que realizam em suas existências isoladas e coletivas. Mas, se não
podemos tolher-lhes aí a liberdade, também não podemos esquecer que existe o
instituto imortal da justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com
os seus atos. Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças
humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões
africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das
armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer
natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos
perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações. O homem branco da
Europa, entretanto, está prejudicado por uma educação espiritual condenável e
deficiente. Desejando entregar-se ao prazer fictício dos sentidos, procura
eximir-se aos trabalhos pesados da agricultura, alegando o pretexto dos climas
considerados impiedosos. Eles terão a liberdade de humilhar os seus irmãos, em
face da grande lei do arbítrio independente, embora limitado, instituído por
Deus para reger a vida de todas as criaturas, dentro dos sagrados imperativos da
responsabilidade individual; mas, os que praticarem o nefando comércio sofrerão,
igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e
flagelados em identidade de circunstância. Na sua sede nociva de gozo, os homens
brancos ainda não perceberam que a evolução se processa pela prática do bem e
que todo o determinismo de Nosso Pai deve assinalar-se pelo “amai o próximo como
a vós mesmos”. Ignoram voluntariamente que o mal gera outros males com um largo
cortejo de sofrimentos. Contudo, através dessas linhas tortuosas, impostas pela
vontade livre das criaturas humanas, operarei com a minha misericórdia.
Colocarei a minha luz sobre essas sombras, amenizando tão dolorosas crueldades.
Prossegue com as tuas renúncias em favor do Evangelho e confia na vitória da
Providência Divina.
Calara-se a voz de Jesus por instantes; mais confortado, Ismael continuou:
- Senhor, não teríeis um meio direto de orientar a política dominante, no
sentido de se purificar o ambiente moral da Terra de Santa Cruz?
Ao que o Divino Mestre ponderou sabiamente:
- Não nos compete cercear os atos e intenções dos nossos semelhantes e sim
cuidar intensamente de nós mesmos, considerando que cada um será justiçado na
pauta de suas próprias obras. Infelizmente, Portugal, que representa um
agrupamento de espíritos trabalhadores e dedicados, remanescente dos antigos
fenícios, não soube receber as facilidades que a misericórdia do Supremo Senhor
do Universo lhe outorgou nestes últimos anos. Até aos meus ouvidos têm chegado
as súplicas dolorosas das raças flageladas por sua prepotência e desmesuradas
ambições. Na velha Península já não existe o povo mais pobre e mais laborioso da
Europa. O luxo das conquistas lhe amoleceu as fibras criadoras e todas as suas
preciosas energias e qualidades de trabalho vêm esmorecendo sob o amontoado de
riquezas fabulosas. Entretanto, o tempo é o grande mestre de todos os homens e
de todos os povos, e, se não nos é possível cercear o arbítrio livre das almas,
poderemos mudar o curso dos acontecimentos, a fim de que o povo lusitano
aprenda, na dor e na miséria, as lições sagradas da experiência e da vida.
Ismael retornou à luta, cheio de fervorosa coragem e os acontecimentos foram
modificados.
Os donatários cruéis sofreram os mais tristes reveses no solo do Brasil.
Os tupinambás e os Tupiniquins, que se localizavam na Bahia e haviam recebido
Cabral com as melhores expressões de fraternidade, reagiram contra os
colonizadores, transformados, para eles, em desalmados verdugos. Lutas cruentas
desencadearam contra os brancos, que lhes depravavam os costumes.
A luxuosa expedição de João de Barros, que se destinava ao Maranhão, mas que
saíra de Lisboa com instruções secretas para conquistar o ouro dos incas, no
Peru, dispersou-se no mar, sofrendo os seus componentes infinitos martírios e
resgatando com elevados tributos de sofrimento as suas criminosas intenções, na
condenável aventura.
Os tesouros das Índias levaram o povo português à decadência e à miséria, pela
disseminação dos artifícios do luxo e pelas campanhas abomináveis da conquista,
cheias de crueldade e de sangue. A sede de ouro acarretava o abandono de todos
os campos.
A Casa de Avis, sob cujo reinado se iniciou o tráfico hediondo dos homens
livres, desapareceu para sempre, depois de sucessivos desastres. Após a derrota
de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, o trono caiu nas mãos do Cardeal D. Henrique
e, em 1580, Portugal, exâmine, entrega-se ao domínio da Espanha, acentuando-se a
sua decadência com Filipe II, o mais fanático e o mais cruel de todos os
príncipes da Europa do século XVI.
Na formação da Pátria do Evangelho, o homem branco alterara os fatores, com as
suas taras estratificadas e com a sua vontade independente; Jesus, no entanto,
alterou os acontecimentos com o seu poder magnânimo e misericordioso.
Os filhos da África foram humilhados e abatidos, no solo onde floresciam as suas
bênçãos renovadoras e santificantes; o Senhor, porém, lhes sustentou o coração
oprimido, iluminando o calvário dos seus indizíveis padecimentos com a lâmpada
suave do seu inesgotável amor. Através das linhas tortuosas dos homens, realizou
Jesus os seus grandes e benditos objetivos, porque os negros das costas
africanas foram uma das pedras angulares do monumento evangélico do Coração do
Mundo. Sobre os seus ombros flagelados, carrearam-se quase todos os elementos
materiais para a organização física do Brasil e, do manancial de humildade de
seus corações resignados e tristes, nasceram lições comovedoras, imunizando
todos os espíritos contra os excessos do imperialismo e do orgulho
injustificáveis das outras nações do planeta, dotando-se a alma brasileira dos mais belos sentimentos de fraternidade, de ternura e de perdão.
Por: Humberto de Campos, Do livro: Brasil, Coração do Mundo – Pátria do Evangelho, Médium: Francisco Candido Xavier
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