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Raros amigos seriam capazes de compreender a situação de Joaquim Finisterra, homem dos mais pacientes e conformados do mundo. Pai de sete filhos, rapazes e moças folgazões, Finisterra não encontrava apoio moral nem auxilio material em nenhum deles.

Envergando a roupa surrada de todo dia, engraxando ele mesmo os sapatos, nunca se lhe notava mudança na atitude serena e resignada. Recebia o ordenado mensal de mil e quinhentos cruzeiros, em funções administrativas no escritório de empresa importante, e o salário se evaporava em casa, como pólvora atirada ao fogo.

Não fossem as consolações do Espiritismo cristão, talvez o nosso homem não resistisse. A família nunca lhe aceitara de bom grado as tendências espiritualistas. Entre ela e ele havia singular abismo de incompreensão. Não que Finisterra fosse insensível ou indiferente. Não.

O velho transbordava de renúncia e dedicação a todos; desfazia-se em carinho paternal; entretanto, caráter nobre e sincero, não podia aprovar a irreflexão dos filhos na vida social. Nenhum se dispunha ao trabalho encarando responsabilidades e compromissos. Passavam o dia no leito, pálidos e esgotados, mas à noite, invariavelmente, ostentavam trajes do último figurino, compareciam às festas elegantes, cassinos e pontos chiques. Alta madrugada regressavam embriagados, ou cansadíssimos.

A princípio, Finisterra tudo fez no louvável intuito de remediar a situação, procurando impor-se pela ternura e autoridade; todavia, a esposa, Dona Mariana, comprometia esse trabalho com a sua feição de mãe ignorante, embora profundamente afetiva.

Se o genitor concitava os rapazes a lhe ouvirem conselhos, surgia-lhe a mulher pela frente, bradando nervosa:

– Cala-te Joaquim! Não tens vergonha de advertir nossos filhos dessa forma? Que fizeram os meninos?

Toda esta tempestade porque não voltaram ontem mais cedo? E se eu quisesse contar quanto já sofri neste mundo por tua causa?

– Ora, Mariana – volvia ele serenamente –, sou pai e não desejaria transformar-me em carrasco dos filhos. Falo-lhes por amor, procurando integrá-los na esfera dos homens de bem.

A Srª. Finisterra, porém, antes que o marido ampliasse o ponto de vista, atalhava furiosa:

– Já sei. Homens de bem, no teu conceito, são burros de carga que agüentam com o fardo alheio. Meus filhos não terão esse destino. Que vivas na escravidão do trabalho, vá lá! Estamos velhos e inúteis. Os meninos, porém, não nasceram cativos. Hão de viver como bem quiserem, e para isso tenho meus braços fortes, caso te negues ao pão de cada dia.

As duas moças abraçavam-na com ares triunfais, os rapazes sorriam vitoriosos.

Joaquim fixava a cena doméstica, de olhos úmidos, e compreendia a inutilidade de qualquer discussão. Dilatar o atrito seria tomar o vagão do escândalo e, por esse motivo, recolhia-se ao quarto, a manusear velhos livros ou renovando a Deus o pedido de socorro espiritual.

No princípio de cada mês, as contas enormes choviam em casa. Lojas e armazéns apresentavam débitos quase fantásticos.

Recebia Finisterra o salário e entregava-o pontualmente à mulher. Frequentemente, contudo, Dona Mariana reclamava:

– Joaquim, com estes pobres vinténs acabaremos nas casas de prego. Por que não te mexes? É preciso encarar o futuro. Parece incrível que um chefe de escritório ganhe esta miséria. Procura o diretor-geral, expõe-lhe nossa situação, do contrário eu mesma assumirei a responsabilidade dessa iniciativa. Este mês o dinheiro não chegou para satisfazer às necessidades mais prementes.

Preciso mais novecentos cruzeiros.

– Não tenho – explicava o marido sacrificado.

– Lança novo empréstimo. Devo pagar antes de domingo os vestidos de Helena e Libertina.

Finisterra, mobilizando os sentimentos mais justos, ponderava receoso:

– Não tenho duvida em pedir nova quantia ao meu procurador; mas tu não achas razoável que as meninas se coloquem dignamente? Há concursos valiosos para os ministérios públicos e, ainda que elas não alcançassem remunerações compensadoras, ganhariam algo para auxiliar-me no elevado padrão de vida que defrontamos atualmente.

A palavra de Joaquim, de inflexão carinhosa que a caracterizava, era de esclarecer o coração mais inculto; no entanto, a companheira replicava colérica:

– Nossas filhas no serviço? Nunca! Sempre foste pai desnaturado e indiferente. Como se haverão as pobrezinhas em face das exigências descabidas do serviço público? Esqueces que o pai é responsável pelo sustento dos filhos?

– Não é isto – explicava Finisterra calmamente –, trata-se de providência lógica no mecanismo doméstico. Na juventude não trabalhamos por auxiliar os pais devotados e generosos? Em que nos tornamos menos dignos? O trabalho nobilita sempre, aproximando-nos de Deus.

Dona Mariana desfechava-lhe um olhar de feroz egoísmo e rematava :

– Essas teorias são tuas, reflexo do teu Espiritismo inconseqüente. Não reduzirei meus filhos à condição de animais de carga.

Argumentos do esposo tornavam-se inúteis. A companheira comentava o assunto, desabridamente, com os filhos. Na semana que Finisterra conversasse sobre trabalho, choviam ditérios, zombarias, observações ásperas e ingratas.

O tempo não remediava a situação, antes agravava os problemas. Os rapazes tornavam-se mais vadios, as jovens mais ociosas. Ao atingir sessenta e cinco anos, apresentava-se Joaquim tão recurvado, tão encanecido que aparentava mais de um século de idade.

Foi nessa altura que os negócios da família se complicaram ao extremo. Atirados ao jogo de azar, os rapazes consumiam somas consideráveis, drenadas do bolso paterno pela falsa ternura maternal. Completamente bloqueado de dividas vultosas, Finisterra não pôde recorrer a novos empréstimos para atender aos caprichos da esposa e aos desmandos dos filhos. Multiplicavam-se atritos, discussões e queixas amargas.

Quando a tormenta doméstica atingiu o ponto culminante, com a insolência de cobradores exigentes e atrevidos, à porta, Dona Mariana procurou o refúgio da oração, na noite que lhe pareceu mais cruel.

– Oh! meu Deus – clamava a infeliz –, por que nos esquecestes em vossa infinita bondade?

E, mãe cega pelo próprio egoísmo, continuava:

– Meus filhos sofrem injustiças, são feridos pelo destino humilhante. Acolhei minhas súplicas! Ajudai-me a levantar as energias do meu desventurado esposo, vencido e desanimado deste mundo! Inspirai a seus chefes que lhe aumentem o ordenado miserável!... Estou cansada de exigências, Senhor! Dignai-vos ajudar-me o coração aflito de mãe, não me abandoneis! Tende piedade de meus filhos, de meus pobres filhinhos!...

Embargada de lágrimas, soluçou baixinho, terrivelmente desalentada. Não viu, porém, a forma luminosa que a abraçou de leve, em sinal de assistência e carinho.

A prece de Dona Mariana fora ouvida.

Henrique, dedicado amigo de outras eras, que sempre tentava auxiliá-la inutilmente, depois de ungir-lhe o coração de brandas esperanças, reuniu nessa noite as entidades generosas, cooperadoras assíduas a favor da paz dos Finisterras, e explicou delicadamente:

– Meus irmãos, a súplica de nossa amiga comoveu-me fundamente. Precisamos auxiliá-la de forma decisiva. Creio que a solução caridosa e justa será chamarmos o nosso Joaquim à vida espiritual. Roguemos ao Senhor a permissão de romper os laços frágeis que o retêm nas esferas do Planeta. Subtraindo-o ao lar, a esposa e os filhos abrirão as portas de receptividade à inspiração superior, curando-se-lhes a cegueira. Vejo na medida a única providência aconselhável.

Ninguém divergiu do alvitre valioso e a amorosa assembléia, após sincera súplica, foi atendido no propósito de libertar o velho companheiro.

Com efeito, dentro de quatro dias Joaquim Finisterra desencarnava repentinamente num ataque de angina.

Somente nessa hora, reconheceu a família quem era aquele velhinho recurvado, de fisionomia inalterável.

Dona Mariana lamentava estentoricamente a perda irremediável, os filhos soluçavam de dor.

Entretanto, semanas depois, vizinhos e amigos notaram a tirânica Sr. Finisterra exprimindo-se em gestos nobres e humildes, pela primeira vez, e quando recebeu o prêmio de seguro deixado por Joaquim, cada filho se encontrava no serviço honesto, consagrando o dia ao suor do trabalho digno, e a noite ao repouso da bênção familiar.


Por: Humberto de Campos, Do livro: Reportagens e Além Túmulo, Médium: Francisco Cândido Xavier


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