O Regresso de Simão Pedro, por Maria Dolores
Carta de Um Morto
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Pede-me você notícias do cemitério nas comemorações de Finados. E como tenho
em mãos a carta de um amigo, hoje na Espiritualidade, endereçada a outro amigo
que ainda se encontra na Terra, acerca do assunto, dou-lhe a conhecer, com
permissão dele, a missiva que transcrevo, sem qualquer referência a nomes, para
deixar-lhe a beleza livre das notas pessoais.
Eis o texto em sua feição pura e simples :
Meu caro, você não pode imaginar o que seja entregar à terra a carcaça hirta, no
dia dois de Novembro.
Verdadeira tragédia para o morto inexperiente.
Lembrar-se-á você de que o enterro de meu velho corpo, corroído pela doença,
realizou-se ao crepúsculo, quando a necrópole enfeitada parecia uma casa em
festa.
Achava-me tristemente instalado no coche fúnebre, montando guarda aos meus
restos, refletindo na miserabilidade da vida humana...
Contemplando de longe minha mulher e meus filhos, que choravam discretamente num
largo automóvel de aluguel, meditava naquele antigo apontamento de Salomão –
«vaidade das vaidades, tudo é vaidade» –, quando, à entrada do cemitério, fui
desalojado de improviso.
Na multidão irrequieta dos vivos na carne, vinha a massa enorme dos vivos de
outra natureza. Eram desencarnados às centenas, que me apalpavam curiosos, entre
o sarcasmo e a comiseração.
Alguns me dirigiam indagações indiscretas, enquanto outros me deploravam a
sorte.
Com muita dificuldade, segui o ataúde que me transportava o esqueleto imóvel e,
em vão, tentei conchegar-me à esposa em lágrimas.
Mal pude ouvir a prece que alguns amigos me consagravam, porque, de repente, a
onda tumultuária me arrebatou ao circulo mais íntimo.
Debalde procurei regressar à quadra humilde em que me situaram a sombra do que
eu fora no mundo... Os visitantes terrestres daquela mansão, pertencente aos
supostos finados, traziam consigo imensa turba de almas sofredoras e revoltadas,
perfeitamente jungidas a eles mesmos.
Muitos desses Espíritos, agrilhoados aos nossos companheiros humanos, gritavam
ao pé das tumbas, contando os crimes ocultos que os haviam arremessado à vala
escura da morte, outros traziam nas mãos documentos acusadores, clamando contra
a insânia de parentes ou contra a venalidade de tribunais que lhes haviam
alterado as disposições e desejos.
Pais bradavam contra os filhos. Filhos protestavam contra os pais.
Muitas almas, principalmente aquelas cujos despojos se localizam nos túmulos de
alto preço, penetravam a intimidade do sepulcro e, de lá, desferiam gemidos e
soluços aterradores, buscando inutilmente levantar os próprios ossos, no intuito
de proclamar aos entes queridos verdades que o tímpano humano detesta ouvir.
Muita gente desencarnada falava acerca de títulos e depósitos financeiros
perdidos nos bancos, de terras desaproveitadas, de casas esquecidas, de objetos
de valor e obras de arte que lhes haviam escapado às mãos, agora vazias e
sequiosas de posse material.
Mulheres desgrenhadas clamavam vingança contra homens cruéis, e homens
carrancudos e inquietos vociferavam contra mulheres insensatas e delinqüentes.
Talvez porque ainda trouxesse comigo o cheiro do corpo físico, muitos me tinham
por vivo ainda na Terra, capaz de auxiliá-los na solução dos problemas que lhes
escaldavam a mente, e despejavam sobre mim alegações e queixas, libelos e
testemunhos.
Observei que os médicos, os padres e os juízes são as pessoas mais discutidas e
criticadas aqui, em razão dos votos e promessas, socorros e testamentos, nos
quais nem sempre corresponderam à expectativa dos trespassados.
Em muitas ocasiões, ouvi de amigos espíritas a afirmação de que há sempre muitos
mortos obsidiando os vivos, mas, registrando biografias e narrações, escutando
choro e praga, tanto quanto vendo o retrato real de muitos, creio hoje que há
mais vivos flagelando os mortos, algemando-os aos desvarios e paixões da carne,
pelo menosprezo com que lhes tratam a memória e pela hipocrisia com que lhes
visitam as sepulturas.
Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os familiares
naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém-vindo, e, sòmente quando
os homens e as mulheres, quase todos protocolares e indiferentes, se retiraram,
é que as almas terrivelmente atormentadas e infelizes esvaziaram o recinto,
deixando na retaguarda tão sòmente nós outros, os libertos em dificuldade
pacífica, e fazendo-me perceber que o tumulto no lar dos mortos era uma simples
conseqüência da perturbação reinante no lar dos vivos.
Apaziguado o ambiente, o cemitério pareceu-me um ninho claro e acolhedor, em que
me não faltaram braços amigos, respondendo-me às súplicas, e a cidade, em torno,
figurou-se-me, então, vasta necrópole, povoada de mausoléus e de cruzes, nos
quais os espíritos encarnados e desencarnados vivem o angustioso drama da morte
moral, em pavorosos compromissos da sombra.
Como vê, enquanto a Humanidade não se habilitar para o respeito à vida eterna, é
muito desagradável embarcar da Terra para o Além, no dia dedicado por ela ao
culto dos mortos que lhe são simpáticos e antipáticos.
Peça a Jesus, desse modo, para que você não venha para cá, num dia dois de
Novembro. Qualquer outra data pode ser útil e valiosa, desde que se desagarre
daí, naturalmente, sem qualquer insulto à Lei. Rogue também ao Senhor que, se
possível, possa você viajar ao nosso encontro, num dia nublado e chuvoso,
porque, em se tratando de sua paz, quanto mais reduzido o séqüito no enterro
será melhor.
E porque o documento não relaciona outros informes, por minha vez termino também
aqui, sem qualquer comentário.
Por: Irmão X, Do livro: Cartas e Crônicas, Médium: Francisco Cândido Xavier
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