
Dez Tesouros, por Casimiro Cunha
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O grande general da Linha Hindenburg, depois de ensarilhar os fuzis da Grande
Guerra, empunhara as armas do pensamento, dedicando-se à mais intensa atividade
intelectual, na construção da Alemanha Nova.
Do seu recanto solitário, Eric Von Ludendorff conseguia o mais assinalado
sucesso com as suas publicações, que se multiplicavam indefinidamente. Só a sua
revista conseguia uma tiragem de setenta mil exemplares. Seus livros eram
disputados, em todos os centros culturais da velha Germânia, ciosa das suas
tradições militares e dos seus sonhos de domínio. Ludendorff personificava esse
espírito de renovação e de imperialismo. As lutas de 1914-1918 haviam cessado,
mas o valoroso militar empregava todas as suas energias, após o armistício, no
sentido de reerguer o povo alemão, depois da derrota. Nacionalista extremado,
não tolerava a república, era adversário declarado da igreja católica e ferrenho
inimigo dos judeus e da maçonaria, concentrando todas as suas aspirações de
homem e de soldado no pan-germanismo, acreditando que somente da Alemanha
poderia surgir o próprio aperfeiçoamento do mundo. Com Hindenburg, havia sido a
coluna inexpugnável dos exércitos das potências centrais na Grande Guerra. Do
seu pulso de ferro haviam emanado quase todos os coeficientes de força, em Liège
e Tannenberg. Suas tradições de chefe eram objeto de veneração dos seus próprios
inimigos, e nos tempos atuais, era o valoroso soldado a única voz tolerada na
Alemanha hitlerista, nos problemas da análise do novo regímen, em virtude da sua
situação excepcionalíssima, perante as forças armadas de sua pátria, que se
ufanavam de possuir um roteiro no seu grande espírito.
Agora, porém, nos últimos tempos, fora o general internado numa Casa de Saúde de
Munich, afim de estudar-se a possibilidade de uma operação na bexiga, que lhe
devolvesse a saúde abalada aos setenta e dois anos sobre a face da Terra.
Todos os seus compatriotas acompanharam-lhe o tratamento, aguardando a volta do
valoroso soldado aos misteres de cada dia, pelo bem da Alemanha. O prognóstico
dos médicos era o mais favorável possível. Ludendorff era senhor de uma
invejável constituição orgânica. E não seria de estranhar que voltasse um dia à
caserna para a vida ativa. Na época do armistício, Hindenburg contava mais de
setenta anos de idade, Foch tinha aproximadamente sessenta e oito. Era assim que
o exército alemão esperava ainda e sempre a inspiração daquele homem
extraordinário. Os facultativos, não obstante a impossibilidade de uma
intervenção cirúrgica, consideravam-no a caminho de franco restabelecimento,
chegando a conceder-lhe a precisa permissão para afastar-se do leito
diariamente. Tudo fazia entrever a devolução de sua saúde.
Mas, naquele dia, o general, dentro de um círculo de recordações, rememorava,
apunhalado de saudade, todos os caminhos percorridos. Do seu leito, parecia
contemplar ainda a batalha de Tannenberg, onde a sua coragem substituíra a
indecisão do general Prittwitz e, conduzindo mais longe a sua memória, voltava
aos seus estudos militares na Academia de Grosslichtenfeld, revendo afetos da
mocidade e abraçando, em pensamento, velhos camaradas da infância. Uma singular
emotividade fazia vibrar o seu coração enrijecido nas lutas, até que um suave e
momentâneo repouso físico lhe fechou os olhos do corpo, abrindo a sua visão
espiritual, dentro de uma considerável amplitude. Parecia-lhe haver regressado
aos tempos longínquos da mocidade, tal a sua lucidez e extraordinária
desenvoltura.
Ao seu lado, estava o grande amigo de todas as lutas.
Hindenburg, porém, já não era mais o soldado cheio de audácia e de aprumo. Seu
corpo se achava destituído de todas as insígnias e de todos os uniformes e no
seu olhar andava uma onda de tristeza e de humildade, saturada de indefinível
ternura.
- "Eric - falou brandamente - não tardarás também a transpor os portões da
Eternidade... Guarda em teu espírito a esperança no Céu e no Deus de
misericórdia, que é a vida de todas as coisas... Abandona todas as tuas
preocupações de grandeza e de imperialismo, porque diante da morte desaparecem
todos os nossos patrimônios de posse e de domínio material! Renova as tuas
concepções da vida, para penetrares o templo da Imortalidade, abandonando o
mundo com um pensamento fraterno para todas as criaturas... O nosso sonho de
imperialismo e de superioridade da Alemanha não passa de uma vaidade tocada de
loucura, que Deus pode desfazer de um instante para outro, como o vento poderoso
que move as areias de uma praia. Fecha todas as portas do orgulho e da
exaltação, porque, se a nossa pátria quis guardar as minhas cinzas no Panteão de
Tannenberg, o meu espírito foi obrigado a se socorrer do último dos nossos
comandados... O generalíssimo das batalhas, para Deus, não passava de um verme
obscuro e insolente, condenado a prestar as mais severas contas de suas
atividades sobre a Terra..."Ludendorff ouvia, com estranheza, as palavras que
lhe vinham ao coração, das profundezas do túmulo. Dentro do seu orgulho
inflexível conseguiu balbuciar:
- "Deus? Não existe outro Deus a não ser aquele que simboliza a força, a
superioridade da Alemanha..."
- "Cala-te! - replicou ainda a voz pungente da sombra. Acima de todas as pátrias
do planeta, está a misericórdia suprema de um Deus, cuja providência é a luz e o
pão de todas as criaturas. A sua sabedoria permitiu que os homens se dividissem
à sombra de bandeiras, não para a carnificina das batalhas, mas para que amassem
a escola do mundo terrestre, aproveitando os seus trabalhos, dentro do idealismo
das pátrias, até que conseguissem, longe de todo o estímulo do espírito de
concorrência, compreender integralmente as leis da fraternidade e da
solidariedade humana... Na balança do seu amor e da sua justiça inviolável, a
Alemanha não vale mais que a Palestina. Os judeus que combates são igualmente
nossos irmãos, no caminho da vida... Reconhece toda a verdade das minhas
fraternas revelações, porque, na realidade, nenhuma nação, como nenhum homem, se
pode antepor à Vontade Suprema... Unamos as mãos, longe dos combates
incompreensíveis, dilatando o ideal da fraternidade sobre a Terra, sob a bênção
compassiva de Jesus-Cristo, que é o único fundamento indestrutível na face deste
mundo, onde todas as glórias passam, como a vertigem de um relâmpago. Em breve,
teu corpo repousará nas cinzas da terra, como os nossos despojos guardados na
solidão de Tannenberg. Sobre a poeira das ilusões, hão de elevar-se os cânticos
guerreiros, mas nós, com a serenidade da distância, nos uniremos nos céus da
nossa pátria, implorando ao Senhor derrame sobre todos os nossos compatrotas os
eflúvios do seu amor, da sua misericórdia e da sua paz!..."
Nesse momento, entretanto, Ludendorff não conseguiu ouvir mais a voz dor'>consoladora
e amiga da sombra.
Suas fibras emotivas haviam-se dilatado ao Infinito. Seu coração parecia parado
de angústia, na sepultura do torax envelhecido, e uma lágrima dolorosa lhe
pairava nos olhos saturados de espanto. Todas as suas idéias de domínio estavam
destruídas nos raciocínios de um instante. Seu espírito voltara à vigília, cheio
de angústia inexprimível.
Cercam-no os facultativos, verificando a queda brusca de todas as suas forças. O
valente soldado da Grande Guerra estava ali, vencido, em face da morte, e, daí a
algumas horas, sem que os médicos pudessem explicar o desenlace inesperado,
Ludendorff penetrava os pórticos do mundo espiritual, amparado por uns braços de
névoa, não mais para pregar o imperialismo do seu país ou para recordar os dias
gloriosos de Tannenberg, mas para orar humildemente, diante da misericórdia
divina, suplicando ao Senhor a inspiração necessária para os vivos da sua
pátria.
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