O Regresso de Simão Pedro, por Maria Dolores
Livre Arbítrio
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A liberdade é a condição necessária da atina humana que, sem
ela, não poderia construir seu destino. É em vão que os filósofos e os teólogos
têm argumentado longamente a respeito desta questão. À porfia têm-na obscurecido
com suas teorias e sofismas, votando a Humanidade à servidão em vez de a guiar
para a luz libertadora. A noção é simples e clara. Os druidas haviam-na
formulado desde os primeiros tempos de nossa História. Está expressa nas
"Tríades" por estes termos: Há três unidades primitivas - Deus, a luz e a
liberdade.
À primeira vista, a liberdade do homem parece muito limitada no círculo de
fatalidades que o encerra: necessidades físicas, condições sociais, interesses
ou instintos. Mas, considerando a questão mais de perto, vê-se que esta
liberdade é sempre suficiente para permitir que a alma quebre este círculo e
escape às forças opressoras.
A liberdade e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua
elevação; é a responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem
ela, não seda ele mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes: a
noção de moralidade é inseparável da de liberdade.
A responsabilidade é estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova
ou censura segundo a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova
mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos. Para todo Espírito, por
pequeno que seja o seu grau de evolução, a Lei do dever brilha como um farol,
através da névoa das paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens
nas posições mais humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se
abaixarem a cometer atos indignos.
Se a liberdade humana é restrita, está pelo menos em via de perfeito
desenvolvimento, porque o progresso não é outra coisa mais do que a extensão do
livre-arbítrio no indivíduo e na coletividade. A luta entre a matéria e o
espírito tem precisamente como objetivo libertar este último cada vez mais do
jugo das forças cegas. A inteligência e a vontade chegam, pouco a pouco, a
predominar sobre o que a nossos olhos representa a fatalidade. O livre-arbítrio
é, pois, a expansão da personalidade e da consciência. Para serros livres é
necessário querer sê-lo e fazer esforço para vir a sê-lo, libertando-nos da
escravidão da ignorância e das paixões baixas, substituindo o império das
sensações e dos instintos pelo da razão.
Isto só se pode obter por uma educação e uma preparação prolongada das
faculdades humanas : libertação física pela limitação dos apetites; libertação
intelectual pela conquista da verdade; libertação moral pela procura da virtude.
É esta a obra dos séculos. Aias, em todos os graus de sua ascensão, na
repartição dos bens e dos males da vida, ao lado da concatenação das coisas, sem
prejuízo dos destinos que nosso passado nos inflige, há sempre lugar para a
livre vontade do homem.
Como conciliar nosso livre-arbítrio com a presciência divina? Perante o
conhecimento antecipado que Deus tem de todas as coisas, pode-se verdadeiramente
afirmar a liberdade humana? Questão complexa e árdua na aparência que fez correr
rios de tinta e cuja solução é, contudo, das mais simples. Mas, o homem não
gosta das coisas simples; prefere o obscuro, o complicado, e não aceita a
verdade senão depois de ter esgotado todas as formas do erro.
Deus, cuja ciência infinita abrange todas as coisas, conhece a natureza de cada
homem e as impulsões, as tendências, de acordo com as quais poderá
determinar-se. Nós mesmos, conhecendo o caráter de uma pessoa, poderíamos
facilmente prever o sentido em que, numa dada circunstância, ela decidirá, quer
segundo o interesse, quer segundo o dever. Uma resolução não pode nascer de
nada. Está forçosamente ligada a uma série de causas e efeitos anteriores de que
deriva e que a explicam. Deus, conhecendo cada alma em suas menores
particularidades, pode, pois, rigorosamente, deduzir, com certeza, do
conhecimento que tem dessa atina e das condições em que ela é chamada a agir, as
determinações que, livremente, ela tomará.
Notemos que não é a previsão de nossos atos que os provoca. Se Deus não pudesse
prever nossas resoluções, não deixariam elas, por isso. de seguir seu livre
curso.
É assim que a liberdade humana e a previdência divina conciliam-se e combinam,
quando se considera o problema à luz da razão.
O círculo dentro do qual se exerce a vontade do homem, é, de mais a mais,
excessivamente restrito e não pode, em caso algum, impedir a ação divina, cujos
efeitos se desenrolam na imensidade sem limites. O fraco inseto, perdido num
canto do jardim, não pode, desarranjando os poucos átomos ao seu alcance; lançar
a perturbação na harmonia do conjunto e pôr obstáculos à obra do Divino
Jardineiro.
A questão do livre-arbítrio tem uma importância capital e graves conseqüências
para toda a ordem social, por sua ação e repercussão na educação, na moralidade,
na justiça, na legislação, etc. Determinou duas correntes opostas de opinião -
os que negam o livre-arbítrio e os que o admitem com restrição.
Os argumentos dos fatalistas e deterministas resumem-se assim: "O homem está
submetido aos impulsos de sua natureza, que o dominam e obrigam a querer, a
determinar-se num sentido, de preferência a outro; logo, não é livre." A escola
adversa, que admite a livre vontade do homem, em face desse sistema negativo,
exalta a teoria das causas indeterminadas. Seu mais ilustre representante, em
nossa época, foi Ch. Renouvier.
As vistas desse filósofo foram confirmadas, mais recentemente, pelos belos
trabalhos de Wundt, sobre a percepção, de Alfred Fouillée sobre a idéia-força e
de Boutroux sobre a contingência da lei natural.
Os elementos que a revelação neo-espiritualista nos traz, sobre a natureza e o
futuro do ser, dão à teoria do livre-arbítrio sanção definitiva. Vêm arrancar a
consciência moderna à influência deletéria do materialismo e orientar o
pensamento para uma concepção do destino, que terá por efeito, como dizia C. du
Prel, recomeçar a vida interior da Civilização.
Até agora, tanto sob o ponto de vista teológico como determinista, a questão
tinha ficado quase insolúvel. Nem doutro modo podia ser, pois que cada um
daqueles sistemas partia do dado inexato de que o ser humano tem de percorrer
uma única existência. A questão muda, Porém, inteiramente de aspecto se se
alargar o círculo da vida e se se considerar o problema à luz que projeta a
doutrina dos renascimentos. Assim, cada ser conquista a própria liberdade no
decurso da evolução que tem de perfazer.
Suprida, a princípio, pelo instinto, que pouco a pouco desaparece para dar lugar
à razão, nossa liberdade é muito escassa nos graus inferiores e em todo o
período de nossa educação primária. Toma extensão considerável, desde que o
Espírito adquire a compreensão da lei. E sempre, em todos os graus de sua
ascensão, na hora das resoluções importantes, será assistido, guiado,
aconselhado por Inteligências superiores, por Espíritos maiores e mais
esclarecidos do que ele.
O livre-arbítrio, a livre vontade do Espírito exerce-se principalmente na hora
das reencarnações. Escolhendo tal família, certo meio social, ele sabe de
antemão quais são as provações que o aguardam, mas compreende, igualmente, a
necessidade destas provações para desenvolver suas qualidades, curar seus
defeitos, despir seus preconceitos e vícios. Estas provações podem ser também
conseqüência de um passado nefasto, que é preciso reparar, e ele aceita-as com
resignação e confiança, porque sabe que seus grandes irmãos do Espaço não o
abandonarão nas horas difíceis.
O futuro aparece-lhe então, não em seus pormenores, mas em seus traços mais
salientes, isto é, na medida em que esse futuro é a resultante de atos
anteriores. Estes atos representam a parte de fatalidade ou "a predestinação"
que certos homens são levados a ver em todas as vidas. São simplesmente, como
vimos, efeitos ou reações de causas remotas. Na realidade, nada há de fatal e,
qualquer que seja o peso das responsabilidades em que se tenha incorrido,
pode-se sempre atenuar, modificar a sorte com obras de dedicação, de bondade, de
caridade, por um longo sacrifício ao dever.
O problema do livre-arbítrio tem, dizíamos, grande importância sob o ponto de
vista jurídico. Tendo, não obstante, em conta o direito de repressão e
preservação social, é muito difícil precisar, em todos os casos que dependem dos
tribunais, a extensão das responsabilidades individuais. Não é possível fazê-lo
senão estabelecendo o grau de evolução dos criminosos. O neo-espiritualismo
fornecer-nos-ia talvez os meios; mas, a justiça humana, pouco versada nestas
matérias, continua a ser cega e imperfeita em suas decisões e sentenças.
Muitas vezes o mau, o criminoso não é, na realidade, mais do que um Espírito
novo e ignorante em que a razão não teve tempo de amadurecer. "O crime, diz
Duelos, é sempre o resultado dum falso juízo." Ê por isso que as penalidades
infligidas deveriam ser estabelecidas de modo que obrigassem o condenado a
refletir, a instruir-se, a esclarecer-se, a emendar-se. A sociedade deve
corrigir com amor e não com ódio, sem o que se torna criminosa.
As almas, como demonstramos, são equivalentes em seu ponto de partida. São
diferentes por seus graus infinitos de adiantamento : umas novas ; outras
velhas, e, por conseguinte, diversamente desenvolvidas em moralidade e
sabedoria, segundo a idade. Seria injusto pedir ao Espírito infantil méritos
iguais aos que se podem esperar de um Espírito que viu e aprendeu muito. Daí uma
grande diferenciação nas responsabilidades.
O Espírito só está verdadeiramente preparado para a liberdade no dia em que as
leis universais, que lhe são externas, se tornem internas e conscientes pelo
próprio fato de sua evolução. No dia em que ele se penetrar da lei e fizer dela
a norma de suas ações, terá atingido o ponto moral em que o homem se possui,
domina e governa a si mesmo.
Daí em diante já não precisará do constrangimento e da autoridade sociais para
corrigir-se. E dá-se com a coletividade o que se dá com o indivíduo. Um povo só
é verdadeiramente livre, digno da liberdade, se aprendeu a obedecer a essa lei
interna, lei moral, eterna e universal, que não emana nem do poder de uma casta,
nem da vontade das multidões, mas de um Poder mais alto. Sem a disciplina moral
que cada qual deve impor a si mesmo, as liberdades não passam de um logro ;
tem-se a aparência, mas não os costumes de um povo livre. A sociedade fica
exposta pela violência de suas paixões, e a intensidade de seus apetites, a
todas as complicações, a todas as desordens.
Tudo o que se eleva para a luz eleva-se para a liberdade. Esta se expande plena
e inteira na vida superior. A alma sofre tanto mais o peso das fatalidades
materiais, quanto mais atrasada e inconsciente é, tanto mais livre se torna
quanto mais se eleva e aproxima do divino.
No estado de ignorância, é uma felicidade para ela estar submetida a uma
direção. Mas, quando sábia e perfeita, goza da sua liberdade na luz divina.
Em tese geral, todo homem chegado ao estado de razão é livre e responsável na
medida do seu adiantamento. Passo em claro os casos em que, sob o domínio de uma
causa qualquer, física ou moral, doença ou obsessão, o homem perde o uso de suas
faculdades. Não se pode desconhecer que o físico exerce, às vezes, grande
influência sobre o moral; todavia, na luta travada entre ambos, as almas fortes
triunfam sempre. Sócrates dizia que havia sentido germinar em si os instintos
mais perversos e que os domara. Havia neste filósofo duas correntes de forças
contrárias, uma orientada para o mal, outra para o bem. Era a última que
predominava. Há também causas secretas, que muitas vezes atuam sobre nós. Às
vezes a intuição vem combater o raciocínio, impulsos partidos da consciência
profunda nos determinam num sentido não previsto. Não é a negação do
livre-arbítrio; é a ação da alma em sua plenitude, intervindo no curso de seus
destinos, ou, então, será a influência de nossos Guias invisíveis, que se exerce
e nos impele no sentido do plano divino, a intervenção de uma Inteligência que,
vindo de mais longe e mais alto, procura arrancar-nos às contingências
inferiores e levar-nos para as cumeadas. Em todos estes casos, porém, é só nossa
vontade que rejeita ou aceita e decide em última instância.
Em resumo, em vez de negar ou afirmar o livre-arbítrio, segundo a escola
filosófica a que se pertença, seria mais exato dizer: "O homem é o obreiro de
sua libertação." O estado completo de liberdade atinge-o no cultivo íntimo e na
valorização de suas potências ocultas. Os obstáculos acumulados em seu caminho
são meramente meios de o obrigar a sair da indiferença e a utilizar suas forças
latentes. Todas as dificuldades materiais podem ser vencidas.
Somos todos solidários e a liberdade de cada um liga-se à liberdade dos outros.
Libertando-se das paixões e da ignorância, cada homem liberta seus semelhantes.
Tudo o que contribui para dissipar as trevas da inteligência e fazer recuar o
mal, torna a Humanidade mais livre, mais consciente de si mesma, de seus deveres
e potências.
Elevemo-nos, pois, à consciência do nosso papel e fim, e seremos livres.
Asseguraremos com os nossos esforços, ensinamentos e exemplos a vitória da
vontade assim como do bem e, em vez de formarmos seres passivos, curvados ao
jugo da matéria, expostos à incerteza e inércia, teremos feito almas
verdadeiramente livres, soltas das cadeias da fatalidade e pairando acima do
mundo pela superioridade das qualidades conquistadas.
Por: Leon Denis, Caso tenha ou possua, envie-nos a referência desse texto.
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