Veneno Livre
Pede você que os Espíritos desencarnados se manifestem sobre o
álcool, sobre os arrasamentos do álcool.
Muito difícil, entretanto, enfileirar palavras e definir-lhe a influência.
Basta lembrar que a cobra, nossa velha conhecida, cujo bote comumente não
alcança mais que uma só pessoa, é combatida a vara de ferro, porrete, pedra,
armadilha, borralho, água fervente e boca de fogo, vigiada de perto pela
gritaria dos meninos, pela cautela das donas de casa e pela defesa do serviço
municipal, mas o álcool, que destrói milhares de criaturas, é veneno livre, onde
quer que vá, e, em muitos casos, quando se fantasia de champanha ou de uísque,
chega a ser convidado de honra, consagrando eventos sociais. Escorrega na goela
de ministros com a mesma sem-cerimônia com que desliza na garganta dos malandros
encarapitados na rua. Endoidece artistas notáveis, desfibra o caráter de
abnegados pais de família, favorece doenças e engrossa a estatística dos
manicômios; no entanto, diga isso num banquete de luxo e tudo indica que você, a
conselho dos amigos mais generosos, será conduzido ao psiquiatra, se não for
parar no hospício.
Ninguém precisa escrever sobre a aguardente, tenha ela o nome de vodca ou suco
de cana, rum ou conhaque, de vez que as crônicas vivas, escritas por ela mesma,
estão nos próprios consumidores, largados à bebedeira, nos crimes que a imprensa
recama de sensacionalismo, nos ataques da violência e nos lares destruídos. E se
comentaristas de semelhantes demolições devem ser chamados à mesa redonda da
opinião pública, é indispensável sejam trazidos à fala as vítimas de
espancamento no recinto doméstico, os homens e as mulheres de vida respeitável
que viram a loucura aparecer de chofre no ânimo de familiares queridos, as
crianças transidas de horror ante o desvario de tutores inconscientes e,
sobretudo, os médicos encarnecidos no duro ofício de aliviar os sofrimentos
humanos.
Qual! Não acredite que nós, pobres inteligências desencarnadas, possamos grafar
com mais vigor os efeitos da calamidade terrível que escorre, de copinho a
copinho.
É por isso talvez que as tragédias do alcoolismo são, quase sempre, tratadas a
estilete de sarcasmo. E creia você que a ironia vem de longe.
Consta do folclore israelita, numa história popular, fartamente anotada em
vários países por diversos autores, que Noé, o patriarca, depois do grande
dilúvio, rematava aprestos para lançar à terra ainda molhada a primeira vinha,
quando lhe apareceu o Espírito das Trevas, perguntando, insolente:
- Que desejas levantar, agora?
- Uma vinha - respondeu o ancião, sereno.
O sinistro visitante indagou quanto aos frutos esperados da plantação.
- Sim - esclareceu o bondoso velho -, serão frutos doces e capitosos. As
criaturas poderão deliciar-se com eles, em qualquer tempo, depois de colhidos.
Além disso, fornecerão milagroso caldo que se transformará facilmente em vinho,
saboroso elixir capaz de adormecê-las em suaves delírios de felicidade e
repouso...
- Exijo sociedade nessa lavoura! - gritou Satanás, arrogante. Noé, submisso,
concordou sem restrições e o Gênio do Mal encarregou-se de regar a terra e
adubá-la, para o justo cultivo. Logo após, com a intenção de exaltar a
crueldade, o parceiro maligno retirou quatro animais da arca enorme e passou a
fazer adubagem e a rega com a saliva do bode, com o sangue do leão, com a
gordura do porco e com excremento do macaco.
À vista disso, quantos se entregam ao vício da embriaguez apresentam os
trejeitos e os berros sádicos do bode ou a agressividade do leão, quando não
caem na estupidez do porco ou na momice dos macacos.
Esta é a lenda; entretanto, nós, meu amigo, integrados no conhecimento da
reencarnação, estamos cientes de que o álcool, intoxicando temporariamente o
corpo espiritual, arroja a mente humana em primitivos estados vibratórios,
detendo-a, de maneira anormal, na condição de qualquer bicho.
Irmão X