Carta Aberta
Meu amigo – soube que vocês esperaram, em Sebastianópolis, um escritor já
morto, com grande estardalhaço jornalístico.
À maneira do viajante que volta de longe, estranho na própria terra e
irreconhecível aos seus, deveria ele descer de algum ônibus invisível e aparecer
como fantasma autêntico, relacionando novidades e anedotas do país das sombras.
Segundo a tradição venerável do Evangelho, Jesus apareceu numa sala de portas
cerradas, em Jerusalém, depois da ressurreição, mas somente aos discípulos
amados, à luz da confiança na intimidade do coração, contando-se, ainda, que um
deles, transformando-se, de chofre, em investigador renitente, avançou para o
Mestre, apalpando-lhe as chagas ainda vivas, como se o Cristo só pudesse ser
identificado pelas feridas da cruz.
O escritor que vocês aguardavam, porém, era chamado a testemunho maior. Exigiam
que ele retomasse os ossos carcomidos no apartamento de subsolo, onde seu corpo
descansa, e viesse para a via pública discutir com os sacerdotes, confundir os
médicos, esclarecer tabeliães e serventuários da justiça e mostrar, não somente
as úlceras exclusivamente a um amigo, mas todas as suas vísceras à curiosidade
popular.
Francamente, a expectação de vocês estarrecia a qualquer, embora compreenda com
que naturalidade os vivos provocam os mortos, dentro do véu da carne, velho
manto das ilusões.
Vocês, aí no mundo, enviam tantos amigos para o céu e tantos inimigos para o
inferno, tentando subverter a justiça divina, que não era demais requisitar a
presença de um comentarista morto, recorrendo à justiça humana. E, observando os
apuros do escritor desencarnado, recordei o artigo vigésimo das famosas
instruções de Torquemada, segundo Llorente, que, por espírito de caridade na
salvação dos hereges, recomendava aos inquisidores a exumarão dos cadáveres dos
escrevinhadores impenitentes, para responderem aos processos de lesa-fé, embora
os réus só pudessem comparecer em atitude pouco higiênica, em virtude dos vermes
que se lhes apossavam dos ossos. Felizmente, porém, para a tranquilidade de
todos nós, que já atravessamos as águas turvas do Aqueronte e para honra da
civilização, Tomás de Torquemada também já restituiu os despojos ao campo de
cinzas, há quatrocentos e quarenta e sete anos. Não obstante esta certeza
confortadora, impressionava-me o volume de opiniões desconcertantes e das
acusações lançadas a esmo.
Reclamavam vocês a presença do morto, com todos os pormenores anatômicos e
características psicológicas e, para tanto, pediam o apoio da organização
judiciária, apesar da dificuldade para encontrar um meirinho habilitado a
entregar mandados no “outro mundo”.
Muitos afirmavam que a providência estabeleceria a vitória definitiva da
verdade, como se a ressurreição do Cristo não tivesse felicitado o espírito
humano há quase vinte séculos.
Outros queriam ver para crer, convencidos de que a fé representa construção
fenomênica, sem lasca no raciocínio e no coração. Não faltaram os que lambiam os
beiços, esperando a surpresa final, transformando o respeitável estudo das
questões do destino e do ser em ruidosa luta de boxe, com o menosprezo de todos
os patrimônios espirituais que a civilização ajuntou, devagarinho, vertendo
sangue e lágrimas nos conflitos evolutivos.
Dissuadam-se, porém, se é que ainda conservam injustificável expectativa quanto
aos demais.
Os mortos têm voltado em todos os tempos para acalentar a esperança dos vivos de
boa vontade, mas os homens de má vontade estão cegos e é impossível curar a
cegueira voluntária, não obstante nossa dedicação afetuosa aos companheiros de
luta. Ainda mesmo que os desencarnados surgissem de inopino aos olhos das
criaturas humanas, em vista do entendimento rudimentar em que se encontram,
recorreriam sem demora às teorias de negação, criando recursos para novos
ensaios de dúvida palavrosa e brilhante.
Os fenômenos não saciam a sede espiritual e a sensação não substitui o trabalho
necessário ao desenvolvimento. Convençam-se de que nenhum de nós confundirá as
leis eternas. Nem a exigência de vocês e nem a nossa afetividade poderão
perturbar a ordem estabelecida.
Todas as realizações legítimas pedem preparo e serviço, e você já pensou nas
graves, conseqüências do fato que pleiteavam, apaixonadamente? Que seria dos
vivos, atolados até o pescoço nos interesses mesquinhos do imediatismo
terrestre, se os mortos andassem agora materializados, publicamente,
exigindo-lhes a renovação instantânea que só o trabalho, o tempo e a experiência
podem fornecer?
Desiluda-se, meu caro. Imensurável é a compaixão do Senhor que jamais nos
fulminará a pequenez de vermes com a revelação inopinada e integral de sua
grandeza.
Além disso, vocês todos virão para cá. Ninguém faltará na passagem silenciosa
que alguns companheiros alegres costumam apelidar pitorescarnente de
“defuntolândia”. Sem exceção de um só, lançar-se-ão às águas pesadas do velho
rio da morte. Não importa a identificação dos necrotérios onde vocês deixarão as
vísceras cansadas...
Conforta-nos, sobretudo, a certeza de que nos reuniremos uns aos outros, a fim
de crescermos em sabedoria e compreensão.
Entretanto, recordando as antigas ilusões que também me dominaram, quando
perambulei no vale de sombras da carne, e notando a desvairada paixão com que se
reclamava a presença do morto, ouso terminar esta carta com uma interrogação.
Teriam vocês, de fato, bastante desassombro e serenidade para ver tranquilamente
o fantasma e ouvir as revelações da morte?
Irmão X