Velho Apólogo
Observou o Supremo Pai que o Homem, filho de seu amor e herdeiro de sua
sabedoria, tateava angustiado nas trevas da ignorância, errando no vale escuro
da Morte...
Recomendou então ao Tempo a condução do peregrino das sombras à claridade da
Terra onde o filho infeliz aprenderia a ciência da Vida com a Verdade, para que
o túmulo não mais lhe perturbasse o caminho eterno...
Nasceu o Homem, na esfera carnal e, cuidadosa, a mestra Verdade procurou-o em
pequenino.
Os zeladores do infante, todavia, pais a título precário, afugentaram-na
revoltados.
– O menino é nosso! – gritaram possessos de egoísmo – é cedo, muito cedo para a
intromissão da realidade.
E segregaram o aprendiz miúdo em berço de rendas mentirosas.
Ao invés de revelar-lhe a condição de usufrutuário da escola terrena,
conferiram-lhe perigosas ilusões. Afirmaram-lhe que o mundo era propriedade
dele, que era superior aos semelhantes, que era, em suma, o único ser digo de
respirar na atmosfera planetária.
Incitaram-no a dominar sempre, fosse como fosse, a vencer de qualquer modo,
ainda mesmo quando o sofrimento e a miséria lhe clamassem piedade e justiça.
Quando o Homem pôs o pé fora do lar, na puberdade, era um diabo mirim. Sabia
espancar, depredar, humilhar, impor-se e ferir...
Notou a Verdade que grandes obstáculos se interpunham entre ambos, mas aproximou
se e ofereceu-lhe o tesouro que trazia.
O fedelho sorriu, cínico, e objetou:
– Nada disto. Quero viver por mim mesmo.
Recolheu-se a orientadora, sem desânimo.
Aprumando-se o interessado em plena juventude, voltou a presenteá-lo com o
patrimônio imperecível.
O rapaz exclamou, desdenhoso:
– Estou muito moço ainda! seguirei sem muletas.
Retraiu-se a sublime condutora. Decorridos alguns anos, informou-se de que o
tutelado bebera novos conhecimentos nas fontes do mundo e regressou,
esperançada, ao convívio dele, oferecendo-lhe os bens eternos. Sobraçando
pesados compêndios, o aprendiz fujão, dessa vez, gargalhou, simiesco,
declarando:
– Tenho a Terra. Não preciso do Céu. Estou bastante preocupado com questões
imediatas para internar-me em problemas longínquos! a sugestão é prematura!...
Refugiou-se a instrutora nas vizinhanças, aguardando outro ensejo...
Quando o aluno refratário à lição se consorciou para converter-se em pai
provisório de outros aprendizes na escola terrestre, tornou a buscá-lo,
abrindo-lhe o acesso à espiritualidade superior. O protegido recusou recebê-la.
– Vivo sobremaneira ocupado... não posso cogitar de enigmas transcendentes... –
assegurou.
A incansável benfeitora passou então a visitá-lo, periodicamente, na expectativa
de modificação repentina.
Assim é que o Homem lhe apresentava os mais variados pretextos, em troca da
oferenda divina.
– Hoje, não. Tenho a mulher enferma.
– Enquanto meus filhos estiverem desassossegados.
– Depois. Antes de tudo, é indispensável garantir o futuro da prole.
- Minha cabeça estala!
– Assumi outros compromissos, não sou livre... – Doente como estou, não
arredarei pé de casa.
– Não posso faltar ao clube.
A Verdade jamais desanimou. Procurava-o, de muitos modos, cada semana. O hábil
esgrimista do raciocínio, contudo, dispunha de golpes inesperados. Esquivou-se
maciamente, enquanto lhe sobravam vigor e saúde. Quando se viu, porém,
valetudinário e encanecido, fêz-se vítima e desculpava-se, afiançando :
– Sinto-me fatigado como nunca...
– É imprescindível espichar os anos.
– Estou velho em demasia para renovar-me...
Surgiu, no entanto, um dia, em que identificou singulares diferenças em si
mesmo.
Aterrado, verificou que a carne renascente estava flácida e descontrolada. O
sangue engrossava-se-lhe nas veias.
A epiderme semelhava-se ao pergaminho. Os ossos rangiam, quebradiços.
A Morte impassível acercou-se dele, tentando cerrar-lhe os olhos, mas o infeliz
clamou por ajuda. Socorreu-o a Ciência com picadas e beberagens. A Fé orou
sentidamente, junto ao leito acolhedor.
O mísero, porém, temendo a escuridão do sepulcro, bradava para dentro do próprio
coração:
– A Verdade! quero a Verdade!...
A benfeitora, reconhecendo-o novamente cego, viu-se inibida de atender.
Inclinando-se lhe aos ouvidos, esclareceu:
– Agora é tarde...
O moribundo suplicou a intervenção do Tempo, mas o Tempo escusou-se, informando,
inflexível:
- Agora será necessário esperar...
E a Morte, querida e detestada, respeitada e incompreendida, aproximou-se
serenamente, baixou o pano e concluiu:
– Agora, é comigo. Tratarei de seu caso.
Irmão X