Rogativa e Ação

Nas asas veludosas do sono, chegou o aprendiz ao Palácio Resplandecente da Grande Esfera. Diante da luz que o circundava, suas vestes pareciam constituir pesada túnica de lodo negro. Ofegante de júbilo, encontrou um mensageiro que o aguardava, atencioso, no pórtico. Deslumbrado, ajoelhou-se e exclamou em lágrimas:

– Emissário dos Céus, meu espírito enlameado na carne vive prisioneiro da angústia sem esperança. Em vão procuro a felicidade – mito dos mortais que vagueiam na Terra! Sonho com a paz, desde os albores da existência, entretanto, vivo na luta incessante do mal. Em derredor de mim estende-se a treva impenetrável do sofrimento!... Detesto a dor, mas embalde lhe fujo aos grilhões! Atormento-me por atender às obrigações espirituais que a fé me conferiu nos caminhos do mundo, todavia, afronta-me a adversidade em toda parte. Os homens não me compreendem, as circunstâncias repelem-me e, em todas as situações, sinto o gume afiado da zombaria alheia. Ridicularizam-me os maus, enquanto os bons se desinteressam de minha sorte! os ignorantes, preguiçosos, em demasia, menosprezam-me o concurso e os sábios, excessivamente ocupados, não me dispensam consideração.

Perseguição por dificuldades sem conta, sinto-me encarcerado em pesadas correntes de desespero. Ouço o sublime convite do Evangelho da Luz, mas permaneço sitiado nas sombra pelos obstáculos e tropeços de toda sorte. Se, num esforço supremo, tento abraçar a verdade, encontro multidões de exploradores cínicos e de mentirosos sem consciência!... No círculo de meus familiares, o infortúnio e a aflição constituem a, recompensa aos meus serviços. Sou, talvez, uma peça útil na maquinaria doméstica pela expressão econômica de minha presença, contudo, sinto frio e sede porque ninguém se recorda de minha necessidade de conforto!...

Nesse instante, soluços angustiosos escaparam-lhe do peito opresso. E porque o mentor amigo continuasse em silêncio, embora a compaixão que lhe transparecia do olhar, o peregrino continuou em pranto:

– Viverei assim todo o tempo de minha permanência na carne? não terei direito à paz, à misericórdia? caminharei como condenado a tormento infernal, quando há tantas mãos que abençoam e bocas que sorriem nas estradas humanas? que fazer para remediar a situação dolorosa e terrível?

O emissário fixou nele os olhos muito lúcidos e respondeu com serenidade:

– Não chores por dificuldades imaginárias e nem te refiras a ingratidões inexistentes.

Chora por ti mesmo, pela tua escolha individual no campo da luta! Cercou-te o Senhor de dádivas sublimes. Deu-te o dia radiante de sol e a noite iluminada de estrelas, para que busques a libertarão, mas preferes o encarceramento no escuro abismo da primitiva animalidade. Foste à carne viver em nome dÊle, Divino Doador das Bênçãos, contudo, teimas em viver exclusivamente em nome do teu velho egoísmo. Queres efetivamente a felicidade? faze a felicidade dos outros. Procuras a paz? começa por apaziguar os próprios desejos e extinguir as paixões inferiores que te vibram no ser. Falta-te a colaboração alheia? é que ainda não cooperaste realmente para o bem. Pretendes que os demais se afeiçoem aos teus propósitos, despreocupando-te das necessidades alheias.

A essa altura, o mendigo terrestre enxugava os olhos, embora continuasse genuflexo.

Parecia surpreendido, porquanto ao invés de consolação recebia esclarecimento.

– A imponderação – continuou o mensageiro –, como acontece a muita gente, viciou-te o dom da palavra. Grande é a tua eloquência para exprimir a queixa e profunda a sutileza com que disfarças a realidade de teu mundo íntimo. Ainda não ajudaste os ignorantes, nem respeitaste os sábios. Ao contacto com os primeiros, é preciso exercer a bondade e a paciência, o entendimento e o perdão, e, no convívio dos segundos, é necessário não esquecer a humildade e o aproveitamento, a aplicação e o serviço. E, se choras no círculo da família, muitas vezes bebes o fel do desespero, porque, negando-te à compreensão e ao carinho fraternal, ofereces recursos materiais aos companheiros no sangue.

Talvez porque o interpelado revelasse extrema perturbação no rosto, o emissário ofereceu lhe o braço amigo e terminou:

– Volta ao serviço terreno, meu irmão, em nome de Nosso Divino Senhor! Perdoa e auxilia, trabalha e espera, praticando o bem e esquecendo o mal.

O peregrino da Terra estava confundido e humilhado, mas o mensageiro amparou-o, seguindo-lhe os passos, no retorno ao corpo físico.

Convidado, acompanhei-os, com emoção.

A manhã ensolarada enchia-se de cânticos festivos.

O nosso amigo acordou, vestiu-se e, ao café, uma senhora simpática indagou, humilde:

– Meu filho, que direi aos companheiros que te pedem concurso para os tuberculosos desamparados?

– Nada! – resmungou êle – estou farto de gente má.

A respeitável matrona voltou a perguntar:

– E aos amigos de nossas atividades espiritualistas?

– Diga-lhes que não! não estou disposto a suportar imbecilidades.

– Meu filho! meu filho!... – exclamou a senhora, com inesquecível inflexão de voz.

– Estou entediado, minha mãe! não me dê conselhos! – replicou êle agressivamente.

O generoso orientador dispôs-se ao regresso e disse-me sem mágoa:

– Viu? Inúmeros amigos encarnados rogam, com enternecimento, a proteção divina, mas fogem a ela com indiferença e brutalidade.

E num sorriso sereno:

– Deixemo-los! Tentamos ajudá-los com a luz da verdade e do amor, mas preferem esperar pelas trevas da dor e da morte.


Irmão X