Carta Despretensiosa
Meu caro. Recebi seus apontamentos.
Sei que me não aceitará a resposta com o desejável entendimento. Se ainda me
guarda na lembrança, não me tolera a sobrevivência.
Ler-me-á as palavras, longe daquele acolhimento afetivo da época em que me
afundava num escafandro igual ao seu, sob o denso mar do oxigênio terrestre.
Receber-me-á o esforço de agora com extremo espírito crítico. Buscará saber,
antes de mais nada, se empreguei os verbos acertadamente e se pontuei a missiva
com a elegância necessária.
Provavelmente dirá que meus recursos empobreceram, que minha argumentação não
convence.
Vamos, contudo, às suas ponderações.
Afirma você que os espíritas desencarnados, pelo noticiário que fornecem ao
mundo, se movimentam num plano absolutamente irreal. A seu ver, moramos em casas
ilusórias, cuidamos de instituições que não existem, colhemos flores e frutos de
mentira e pairamos, como sombras, num campo de fantasia. E acrescenta que, para
ajuizar de nossa situação, toma por base o mundo em que pisa. Na apreciação que
lhe orienta os conceitos, a esfera em que você ainda respira é a mais sólida de
toda a estruturação universal. Coisa alguma sofre modificação ao redor de seus
passos, segundo a posição especialíssima em que se coloca.
Se me demorasse por aí, talvez experimentasse amnésia idêntica. Basta dizer-lhe
que enquanto carreguei o fardo benéfico da carne era eu perfeito desmemoriado em
relação aos meus próprios defeitos. E, quanto às minhas necessidades essenciais,
nunca atentei para o tempo que corria, célere, em torno de mim.
Quando os amigos me atiraram terra e cal ao corpo inerme, foi que meditei na
transitoriedade das situações e das coisas. Reportei-me então à infância
distanciada e revi nossa aldeia do Norte, perseguida pela areia invasora.
Casario e arvoredo converteram-se, pouco a pouco, num montão de ruínas.
Companheiros de jogas infantis desapareceram. Alguns haviam partido à procura de
cidades fascinantes, outros jaziam submersos na neblina da sepultura.
Reajustou-se-me a memória, gradativamente, e tornei, pelos olhos da imaginação,
à casa que me viu nascer. A morte brandira, ali, sua foice enorme, a torto e a
direito. A doença lavrara por lá, copiando o fogo em pastagem alcantilada.
Transformações não tinham conta. O padeiro falecera de uma noite para o dia,
vencido por um insulto cerebral. A lavadeira que residia em frente de nós,
mulher robusta e desassombrada, repentinamente passou a usar muletas, em razão
da perna quebrada. Nossos vizinhos, de tempos a tempos, trajavam rigoroso luto,
homenageando parentes mortos; e até o padre mais velho, que despendia semanas,
transmitindo-nos o catecismo, certa manhã se deixou transportar para o
cemitério, quando menos esperávamos.
Tudo se modificava, de hora a hora, até que nos separamos a fim de rever-nos,
mais tarde, na Capital da República.
Você fazia o possível por ocultar os males do estômago e eu dissimulava
habilmente as perturbações do sistema endócrino.
Seu rosto não era o mesmo. Rugas surpreendentes marcavam-no todo. Seus cabelos,
que conhece finos, sedosos e abundantes, estavam ralos e encanecidos. Seus olhos
fitavam-me com firmeza, todavia, injetados de sangue. As mãos bem cuidadas não
mostravam a despreocupação do princípio; entretanto, revelavam-se pesadas e
grossas, exibindo veias salientes.
Certo, você notou profunda mudança em mim, mas a gentileza lhe asfixiou as
observações pessimistas que procurei calar igualmente por minha vez.
E as moças que cortejáramos noutra época, enlevados na paisagem do berço?
Algumas delas, no Rio, embalde tentavam recursos contra a jornada implacável da
Natureza, eram quase irreconhecíveis. Odontólogos exímios não lhes restauravam a
boca que namoramos, embevecidos, nos primeiros arroubos da juventude. Surgiam na
avenida, assim como nós ambos, procurando farmácias para, o reumatismo
iniciante.
A morte, meu caro, teve o condão de acordar-me as reminiscências. E considerando
a amizade que sempre nos ligou, no cenário humano, rememoro, saudoso, sua
própria felicidade longínqua... Não ignoro que você perdeu os pais, a esposa
inesquecível e o filho mais novo que lhe era particularmente querido pelas
afinidades sentimentais. Em dez anos, você mudou de residência quinze vezes,
procurando alívio para o coração angustiado, irremediavelmente enfermo...
Seus olhos permanecem fixos no pretérito e, identificado com a sua dor de
peregrino, cheio de ouro e vazio de paz, lembro-me, saudosamente, até mesmo de
seu belo papagaio que nos divertia, faz quase trinta anos, gritando os nomes de
políticos influentes da hora...
Desejaria confortá-lo, revivê-lo, mas... você, apesar de batido pelam desilusões
e renovações incessantes, está convencido de que vive no plano mais sólido e
inamovível do Universo e acredita que eu seja um vagabundo invisível a contar
anedotas destinadas à ingenuidade humana.
Você, homem de carne e osso, declara-se imutável e assevera que não passo de
sombra a voltar do país da morte.
Como poderá um fantasma consolar um homem seguro de si, a ponto de julgar-se
intangível?
Decididamente, você tem toda a razão.
Irmão X