A Herança
Na mesa do vasto aposento que penetrávamos, em serviço de assistência
espiritual, jazia grafada em belo cursivo a interessante carta que passamos a
transcrever:
Meu Caro Belmiro:
Parece incrível, mas somente hoje consigo tempo para responder-lhe à carta,
recebida há precisamente oito meses. Perdoe-me a demora.
Realmente, o velho morreu, no ano passado; entretanto, apenas agora pude
liquidar o inventário.
Confirmo a notícia da herança. O montante em dinheiro que me veio ao domínio é
de cento e oitenta milhões, mas, automaticamente, sou hoje o dono de oito
prédios, no valor aproximado de quinhentos milhões de cruzeiros velhos.
Isso tudo, somado às jóias que me ficaram, ultrapassa a quantia de oitocentos
mil cruzeiros novos ou quase um bilhão na moeda antiga. E agora, meu caro, é
tocar para a frente.
Espero multiplicar o patrimônio quatro vezes, em dois anos. Esteja certo disso.
Sinto muito não atender à sua recomendação. Você insiste comigo, há muito tempo,
tanto quanto insistiu com o falecido, em assuntos de caridade.
Não fossemos companheiros de infância e não daria atenção ao caso; no entanto,
estimo você suficientemente para deixá-lo sem resposta.
Aprendi com o velho que a vida vale pelo dinheiro que se tem. Você fala em
benefícios aos outros, para que venhamos a ser beneficiados, e afirma que, se
dermos em bondade e desprendimento aos que sofrem na vida, a vida nos retribuirá
em saúde e alegria.
Não sei onde é que você encontrou tanta teoria bonita para se enfeitar.
Espiritismo, reencarnação...Você, Belmiro, é um poeta. Sempre admirei a sua
imaginação. Desde a escola, você é assim – o notável sonhador que a gente
aplaude, mas não pode seguir.
O que sei de mim é que nada compreendo sem o dinheiro. E dinheiro grande.
Acompanhei meu avô, prestando-lhe assistência, durante a minha vida inteira, e
não será agora que vou perder o fruto de meu esforço. Não desfalcarei o que
tenho e, para defender o que tenho, não estou disposto a ceder um tostão. Você
não é o primeiro amigo a falar-me de beneficência, de missão a cumprir, de
solidariedade humana, de mensagens do Além... Acho isso tudo muito bonito, mas
para mim não calha.
Estive trinta anos – pense na extensão desse tempo – trinta anos protegendo o
velho e ajudando-o a preservar o que, no fundo, agora é meu. Acredita que estou
relaxado, a ponto de esquecer-me? Não me venha com a história de que meu avô
teria falado depois da morte para aconselhar-me.
Ele, meu mestre de poupança, não quereria fazer de mim um mão aberta.
Essas conversas de espíritos, meu caro, tem muito de trapaça e bobagem... Os
velhacos inventam as modas e os tolos vão seguindo. Se o vovô quiser dar ordens,
que me apareça.
Não tenho medo de fantasmas.
Quanto à saúde, estou forte. Ainda não completei cinquenta anos e somente e
somente agora obtive a possibilidade de viver como quero. Estou eufórico, feliz.
Nunca pratiquei tanta ginástica e com tanto gosto.
Você me convida a pensar no outro mundo... E eu convido a você para mergulhar
nos prazeres deste mundo mesmo.
Venha para conversarmos e receba um abraço muito cordial do seu velho amigo,
sempre devedor,
Neneco
Esta era a carta escrita e assinada pelo cavalheiro simpático que fôramos
chamados a prestar auxílio espiritual e cujo corpo acabava de se cadaverizar por
força de violento enfarte do miocárdio. E a nota mais significativa de todo o
episódio é que ele, ao arrancar-se do veículo prostrado, em nossa direção,
tomou-nos à conta de enfermeiros encarnados e, tropeçando semilúcido,
informou-nos para logo de que, se estava doente, não queria seguir para o
hospital sem o talão de cheques.
Irmão X