Polissemias no Espiritismo
Há tempos atrás, compulsando uma gramática (Gramática
Normativa, Rocha Lima, José Olympio Ed.), deparei com este termo: polissemia,
nome dado ao fenômeno lingüístico em que uma palavra tem vários significados.
Como exemplo pode-se citar:
Massa, significa quantidade de matéria (Física); o material com que se faz pão,
bolo etc. (mistura de farinha, água e outros ingredientes); multidão, turba.
Cabo, posto militar; acidente geográfico; fim (ao cabo de uma semana terminara
sua tarefa); matar (deu cabo de seu desafeto); cabeça ou princípio (de cabo a
rabo); extremidade por onde se segura um objeto (cabo de vassoura, de panela
etc.); corda (cabo de aço).
O leitor poderá encontrar mais exemplos consultando um dicionário.
Convivemos com este fato e em nossa vida muitos mal-entendidos são conseqüência
desta pluralidade de significados. Muitas vezes o sentido de uma palavra é dado
pelo seu contexto, pelo sentido geral do assunto, da frase dita ou escrita, da
expressão de quem a diz etc. Outras vezes, quando estas condições não existem ou
não são claras, ficamos ou sem entender ou entendemos aquilo que achamos ser, ou
o que queremos que seja. Por exemplo, a frase solta "o cabo avança pelo mar", o
que significa? Qual aí o sentido da palavra "cabo"?
Quando escrevia este texto vi também que esta preocupação não era só minha. O
Editorial da Revista Internacional de Espiritismo (abril de 96), A Doutrina e a
Semântica externava as mesmas preocupações. Kardec, no item I da Introdução de O
Livro dos Espíritos, fala do significado das palavras, das anfibologias, termo
que significa (cf. Dicionário do Aurélio) duplicidade de sentido em uma
construção sintática, ambigüidade. Apesar dos esforços do Codificador, termos
com vários significados surgiram entre os espíritas e alguns deles, às vezes,
causam confusão. Isto é natural em qualquer linguagem, em qualquer idioma. Na
linguagem científica, que se esmera para não ser ambígua, isto ocorre
freqüentemente, havendo então a necessidade de se especificar ou adjetivar os
termos... quando se quer evitar a confusão.
Vamos considerar três palavras que, talvez pelo fato de serem utilizadas dentro
e fora do contexto espírita, tornaram-se polissêmicas. São elas: fluido,
magnetismo e energia.
FLUIDO: Esta palavra é utilizada na Física e no Espiritismo com sentidos bem
diferentes. No século XIX, fluido, em Física, era empregado para designar
materiais capazes de penetrar pelos vazios da matéria e de se escoar. A
eletricidade, o calor, a luz etc., eram tidos como fluidos, além dos gases e
líquidos em geral (ar, água etc.). Posteriormente estas idéias foram abandonadas
pelos físicos, passando o termo fluido a designar somente os gases e os líquidos
em geral, e não mais a eletricidade, o calor, a luz etc. Nessa época, século
XIX, Kardec, fazendo uma analogia dos "materiais" mencionados e manuseados pelos
espíritos, com a eletricidade (então caracterizada pelo fluido elétrico),
denomina-os de fluidos, às vezes adjetivados ou não, como o chamado fluido
magnético, para designar o fluido utilizado pelos magnetizadores. Com o abandono
do termo pelos físicos para caracterizar a eletricidade, o calor etc., o termo
fluido introduzido por Kardec tornou-se interessante, sem perigo de confusão,
pois o significado atualmente utilizado em Física não tem como ser confundido
com o significado utilizado pelo Espiritismo. Parece que Kardec adivinhou...
MAGNETISMO: Este termo surge associado à palavra magneto, outro nome dado ao
ímã. O comportamento de atração e repulsão dos corpo imantados, como a bússola,
parece ter inspirado muitos pesquisadores, principalmente o famoso médico e
químico suíço Paracelsus (1493 - 1541), a utilizarem a analogia destes com os
fenômenos humanos que eles pesquisavam (simpatias e antipatias, indução
psíquica, cura pela imposição das mãos etc.), dando o nome "magnetismo animal".
Este nome ganhou grande notoriedade com o famoso médico austríaco Franz Anton
Mesmer (1775 - 1815). Posteriormente, em 1841, o tema foi rebatizado por
hipnotismo, pelo médico escocês James Braid (1795 - 1860). O termo magnetismo
seguiu sendo utilizado até hoje, conforme pode-se constatar inclusive na
literatura espírita. Magnetismo tem então dois significados: o primeiro (mais
antigo) corresponde ao utilizado em Física: estudo dos ímãs, efeitos das
correntes elétricas, eletroímãs etc. O segundo corresponde ao conjunto de
fenômenos humanos caracterizados por uma influência de um indivíduo sobre
outro(s), que transcende à ação e percepção puramente sensorial (não sei se esta
é um boa definição, porém creio ser suficiente para os propósitos deste artigo).
Apesar da polissemia, não há porque confundir os dois significados. Se o
magnetismo humano e/ou animal está ou não relacionado com o magnetismo dos imãs
e correntes elétricas (é até possível que esteja) não importa, o ponto
principal, atualmente, é que ambos são conceitos diferentes e em âmbitos
diferentes.
ENERGIA: Talvez seja um dos termos polissêmicos mais geradores de confusão. A
palavra energia (do grego, significando capacidade de trabalho, dentre outros)
já havia sido utilizada por Aristóteles, porém introduzida (ou reintroduzida) na
Física por William Thomson, mais conhecido por Lord Kelvin (1824 - 1907), em
1852, praticamente com o mesmo sentido: capacidade de produzir trabalho. Este é
o primeiro significado da palavra. Antes disto, em Física, usava-se as palavras
força e vis (do latim, também significando força). Ao longo do século XIX, o
termo energia vai se popularizando entre os físicos, e depois fora da Física. Na
época de Kardec, o termo força, com o sentido de energia, é ainda predominante.
Atualmente força e energia, no contexto da Física Clássica, têm significados
distintos, o primeiro está associado à segunda lei do movimento de Newton (força
= massa aceleração) e o segundo à capacidade de produzir trabalho (trabalho =
força deslocamento). Força e energia são propriedades da matéria. Note que
Kardec praticamente não utiliza esse último termo. Posteriormente a palavra
energia foi tomando outras acepções, sendo ampliado, generalizado, adquirindo
outras conotações. No final do século XIX e início deste, o famoso químico
alemão Wilhelm Ostwald (1853 - 1932) desenvolveu uma doutrina filosófica
materialista chamada de Energeticismo. Esta doutrina era uma extensão, ou
variante, do empiriocriticismo, nome da filosofia positivista nos países de
língua alemã. Ostwald, baseando-se na ciência da Termodinâmica, procura explicar
os fenômenos naturais e humanos reduzindo-os às transformações energéticas. Quem
leu o livro de Camille Flammarion Deus na Natureza (edição FEB), nota que ele
debate com vários filósofos e cientistas materialistas, Moleschott e Büchner,
entre outros. Ostwald é um continuador destes, procurando ampliar e melhorar as
idéias dos mesmos. O próprio desenvolvimento da Ciência no começo deste século
acabou por enterrar o Energeticismo, porém esta idéia de que matéria é energia
(e energia, no caso, já não sabemos mais o que é) permaneceu. Muitos vêem na
expressão "matéria é energia condensada" um dos últimos esforços do materialismo
para poder explicar o espírito. Talvez por isto muitas pessoas trazem esta idéia
para o movimento espírita, supondo que estão explicando a existência do espírito
à luz da "ciência moderna" (que não é ciência e nem moderna). Neste caso também
podemos afirmar que energia é um termo que abrange a matéria. Eles não se
contrapõem, um engloba o outro.
Talvez por influência do Energeticismo, energia passou a designar também
radiações, como a luz, as ondas de rádio, a radioatividade etc. Este é outro
significado do termo, popularizado pelos textos de divulgação científica (ver A
Ciência confirma o Espiritismo?, Reformador, julho 1995).
Encontramos na literatura espírita a expressão: "o passe é uma transfusão de
energias psíquicas" (Emmanuel; O Consolador, psicografia de F. C. Xavier,
questão 98, edição FEB). Nesta frase, o sentido do termo energias tem o mesmo
sentido do original: capacidade de produzir trabalho, no caso psíquico. Talvez,
por extensão do termo, considerando que o passe seja visto também como uma
transferência de fluidos, os termos energia e fluido passaram a ter o mesmo
significado. E encontramos freqüentemente na literatura espírita expressões que
contém este último significado, como por exemplo: "Quando mais desmaterializado
[o perispírito], mais energia possui e mais leve se torna" (Abel Glaser e Caibar
Schutel (espírito), Conversando sobre Mediunidade, p. 193, Casa Editora "O
Clarim"). Note que aqui o termo energia pode ter também o significado de
"capacidade de produzir trabalho", porém de qualquer modo é sempre oposto à
idéia de matéria, diferente do mencionado anteriormente, em que energia abrange
matéria. O termo energia significando fluido leva-nos a interpretar de forma
diferente a frase "matéria é energia condensada". Ela pode ser entendida agora
como "matéria é fluido condensado", o que está de acordo com os ensinamentos de
O Livro dos Espíritos, que diz que a matéria é uma modificação do fluido cósmico
universal
Para o termo energia há ainda outros significados a serem destacados. Na
expressão "Fulano tem uma energia...", o significado de energia pode ser
entendido como vitalidade, vigor (coerente com o sentido usado na Física), ou
pode ser entendido como personalidade marcante, forte. Em Nutrição o termo
energia aparece associado ao seu significado em Física. A expressão "alimento
energético" significa um alimento que ao ser metabolizado produzirá uma grande
quantidade de energia, uma grande capacidade de produzir trabalho, como as
gorduras. Temos visto também a mesma expressão utilizada com sentido diferente:
alimentos como broto de alfafa, broto de feijão designados como "alimentos
energéticos" em suas embalagens. Pelo que pude entender, a idéia a ser
transmitida é que este alimento é um "promotor de vitalidade", rico em
vitaminas, em substâncias que, no organismo, podem ser precursores de
catalisadores bioquímicos e, talvez, em fluidos vitais. Aqui o termo energético
não tem o significado normalmente utilizado em Nutrição.
Realmente a coisa é confusa. Alguns podem ter a opinião contrária, que as coisas
não são assim e que eu é que as estou fazendo confusas. Podem achar que estou
"fazendo tempestade em copo d'água". É possível e espero estar. Muitos espíritas
não levam o Espiritismo a outros campos do saber ou atividades humanas, porém
trazem estes ao Espiritismo sem, às vezes, muito critério. É essa a nossa
preocupação.
Para finalizar quero apenas realçar que não estou condenando as pessoas por
utilizar este ou aquele termo. As idéias precisam ser expressas e nem sempre
temos palavras para isto. Desejo apenas lembrar uma lição que Kardec nos deixou
através de seu trabalho: critério para escrever e falar, critério para ler e
ouvir.
Aécio Pereira Chagas