A Resposta de Enéas

Enquanto se esperava o médium Palhares, o velho Azevedo Cruz, doutrinador das sessões, confiava o bigode longo, comentando mordaz:

— Não reparam a ausência do Guilhermino? Desde muito tempo, não comparece.

— Que terá acontecido? — indagou D. Amália, piscando os olhos.

— Não sabem? — tornou o orientador do grupo — o nosso amigo caiu fragorosamente. Não sai do pano verde, nem se afasta do mau caminho.

— Que diz? interrogou Dona Margarida, fisgando o interlocutor por cima dos óculos — o Guilhermino desviou-se tanto? será possível?

— Ora, ora — aventurou uma senhora na turma, sussurrando —, a esposa dele é uma infortunada. Guilhermino é bastante pervertido para entender o que sejam obrigações do lar.

Azevedo, olhar transbordante de malícia, acrescentou:

— Nunca me enganou o patife. Velho malandro, o Guilhermino! Simples lobo na pele de ovelha. Conheço-lhe as patranhas, desde o primeiro dia em que me buscou, pedindo socorro.

E a conduta do ausente foi ali examinada, minúcia por minúcia.

Chamavam-lhe irmão de quando em quando, classificando-o de velhaco, alguns instantes depois.

Quando a pequena assembléia apareceu desinteressada, alguém recordou que Palhares estava demorando. Bastou isso para que se concentrasse a atenção geral do retardatário.

Após verificar que ninguém se encontrava à escuta nas vizinhanças, a Senhora Fagundes começou:

— Nosso médium já não é mais o mesmo... Nunca chega à hora, nada recebe de útil nas sessões e vive sempre desapontado...

— Não sabe o que vem acontecendo? — perguntou uma companheira irrequieta — Palhares anda agora bebericando... Por três vezes, senti-lhe pronunciado cheiro de vinho. Como poderá ele, desse modo, receber mensagens elevadas? Quando o médium esquece a responsabilidade própria, tudo vai por água abaixo...

O doutrinador fixou um gesto de puritano e considerou:

— Enquanto permanece ele no bar, demoramos aqui, aguardando reuniões improdutivas.

Palhares, presentemente, é um fracasso. Estou cansado de orar e rogar inutilmente...

Decorridos alguns instantes, entra a vítima, identificando sorrisos acolhedores.

Modifica-se a conversação.

Ao passo que o companheiro relaciona os atropelos havidos no lar, comenta-se a laboriosa missão dos médiuns. A maledicência de minutos antes converte-se em observações de suposto entendimento fraternal.

Palhares chega a sentir-se reconfortado e feliz.

Reúne-se à assembléia, em derredor da mesa.

Azevedo ora longamente, rogando a presença de Enéias, o sábio mentor dos trabalhos espirituais.

Silêncio profundo.

Enéias, contudo, não aparece.

Encerrada a sessão, os companheiros fixam o médium, quase irritados, como se fora ele exclusivamente o responsável pela ausência de comunicações com o plano superior.

Azevedo não consegue sopitar os pensamentos íntimos e exclama:

— Não posso compreender. Há mais de oito meses, estamos como que abandonados. Ora-se com fervor, pedimos humildemente; entretanto, Enéias não responde aos nossos apelos.

Todos concordam desapontados.

Na semana seguinte, reúnem-se de novo.

Nessa noite, Palhares está a postos, na hora convencional, mas espera-se pelo velho Azevedo.

Dona Amália, depois de comentar as desilusões sofridas com os vizinhos, afirmando-se perseguida de Espíritos das trevas, começa a tagarelice venenosa da noite. Baixando o tom de voz, sussurrou:

— Disseram-me no bairro que “seu” Azevedo não está procedendo como quem reconhece os deveres próprios. Meu primo afirmou que estamos redondamente enganados, que o nosso doutrinador perdeu o juízo, logo após a viuvez. Notificou-me, confidencialmente, tê-lo encontrado, por mais de uma vez, em situação equívoca, desfazendo talvez a felicidade de um lar honesto.

Palhares inclinou-se, esboçou um sorriso brejeiro e acentuou:

— Não costumo comentar os defeitos dos outros e, mormente, em se tratando dum irmão na fé; sempre estimei o silêncio da verdadeira caridade, mas, aqui para nós, a situação é de fato alarmante. Há no episódio muita coisa a lamentar. Inspira pena o companheiro infeliz.

E como o velho Arantes provocasse uma informação sólida, para conhecer a procedência da acusação, o médium deu de ombros e respondeu:

— Pelo menos é o que me disse um colega da repartição.

— Absurdo! — bradou o Sr. Siqueira, exasperado — onde chegaremos com semelhantes disparates? Azevedo não passa de miserável hipócrita.

Continuavam a operar as línguas venenosas, quando o companheiro penetrou o recinto.

Efusivas e calorosas saudações.

Nem parecia que se comentava tão escabroso assunto.

Durante meses a fio, a situação do grupo mantinha-se inalterada.

Acusavam-se as outras escolas religiosas, apontavam-se os infelizes que a provação atirava ao escárnio público, discutia-se a posição de lares alheios. E, quando faltavam indivíduos para o pasto da maledicência, maldiziam as instituições da época, criticavam os homens de responsabilidades do tempo, duvidavam de todos, espalhando-se leviandades e estabelecendo contradições.

Antes das preces de abertura, era necessário retirar os cinzeiros pletóricos, abrindo-se janelas para melhorar as condições do ambiente.

Decorrido mais de um ano, que se caracterizara pela excessiva conversação dos encarnados, com absoluto silêncio da esfera invisível, Azevedo se revelou, certa noite, mais preocupado e mais emotivo.

Estabelecido o círculo de companheiros, o velho doutrinador começou a orar, sentidamente, entre lágrimas.

Salientava o tempo de doloroso mutismo dos mentores espirituais, rogava esclarecimentos, pedia socorro, implorando auxílio dos protetores benevolentes. Lamentando a ausência de Enéias, o generoso orientador invisível que tantas vezes se manifestara noutros tempos, o chefe do grupo terminava a súplica:

— Oh! bem-amados amigos da esfera superior, não nos abandoneis... Se estamos em caminho errado, esclarecei-nos! por que permaneceis distantes há tanto tempo?! Por quem sois, atendei-nos! Ouvi as nossas rogativas, reaproximai-vos de nós, por amor de Deus!...

A essa altura, o pranto embargou-lhe a voz.

A pequena assembléia chorava também, igualmente comovida.

Quando a meditação séria empolgou a maioria dos corações, incorporou-se Enéias, valendose de Palhares, e exclamou para todos, pronunciando cada expressão em tom enérgico e amigo:

— Hoje, não iniciamos a palavra espiritual, rogando ao Senhor vos conceda paz e, sim, pedindo-vos, com interesse, guardeis a paz que o Senhor já nos concedeu. Vossa prece comoveu-nos a alma; entretanto, estais equivocados. Nunca estivemos ausentes do trabalho nobre. Aqui nos conservamos invariavelmente no cumprimento do dever, que é fonte de alegrias. Há mais de um ano, porém, utilizais todo o tempo no comentário venenoso e cruel.

Quando não criticais as nações, as coletividades, os lares e as reputações alheias, costumai ferir-vos uns aos outros. Como vedes, meus irmãos, estamos a esperar por vós, que tanto vos distanciastes da obrigação justa. Recordai que é necessário empregar o verbo, no sentido da criação superior. Falai, construindo com a vossa palavra algo de útil para a vida eterna. Não temos, por enquanto, outra mensagem. Quando terminardes as sessões de maledicência, estaremos prontos a iniciar convosco a sessão de Espiritismo construtivo e de Evangelho redentor.

Daí a momentos, a reunião estava finda e, naquela noite, todos se retiraram do recinto, em silêncio.


Irmão X