Uma Despedida
Em nossa reunião da noite de 10 de março de 1955, por permissão de nossos
Benfeitores Espirituais, no horário dedicado às palestras dos Instrutores, o
amigo desencarnado que conhecemos por José Gomes ocupou a organização
psicofônica, falando-nos de sua penosa experiência no Além. Nosso visitante, há
seguramente dois anos, passou pelos serviços assistenciais de nossa agremiação,
desorientado e aflito, voltando até nós, agora calmo e consciente, para
relatar-nos sua história, por intermédio da qual nos faz sentir toda a gama de
sofrimentos em que se enleou, depois do homicídio em que se comprometeu na
Terra. “Uma Despedida” oferece-nos amplo material para meditação e para estudo.
Trazido até aqui por devotados benfeitores, venho agradecer-vos e despedir-me.
Há quase dois anos, fui socorrido nesta casa, fazendo-se luz nas trevas de
minhalma...
Eu era, então, um assassino que por cinqüenta anos padecia no ergástulo do
remorso.
Crendo preservar a minha felicidade, apunhalei um amigo, instigado pela mulher
que eu amava e, apoiando-me na desculpa de legítima defesa, consegui absolvição
na justiça terrestre.
Contudo, que irrisão! O homem que eu supunha haver aniquilado, mais vivo que
nunca prendeu-se-me ao corpo e, em poucos meses, sucumbi devorado por estranha
moléstia que escarneceu de todos os recursos da medicina.
Ai de mim! Nas raias da morte, apesar do conforto que me era oferecido pela fé,
através de um sacerdote, não encontrei para mentalizar senão o quadro do
homicídio que perpetrara.
E à maneira do homem vitimado por tormentoso pesadelo, sem sair do leito em que
se acolhe à prostração, vi-me encarcerado em meus próprios pensamentos, vivendo
a tortura e o pavor que alimentava no campo da minha alma...
Sempre o terrificante painel a vibrar na memória!...
Um companheiro infeliz, suplicando indefeso: — «Não me mate! Não me mate!... » A
presença da mulher querida... Os gênios do crime a gargalharem junto de mim e a
calma impassível da noite, com a minha cólera insopitável a dessedentar-se num
peito exangue e aberto...
Em me cansando de enterrar a lâmina na carne sem resistência, arrojava-me ao
piso da câmara iluminada, mas, a onda esmagadora de sangue levantava-se do chão,
tingindo paredes, afogando móveis, empapando-me a vestimenta e, quando me sentia
semi-sufocado, eis que me erguia de novo para continuar no duelo indefinível.
Se tinha fome, mãos invisíveis ofereciam-me sangue coagulado; se tinha sede,
davam-me sangue para beber...
Era dia? Era noite?
Ignorava.
Somente mais tarde, quando amparado pelas palavras de esclarecimento e de amor
dos nossos benfeitores, por vosso intermédio, vim a saber que o inimigo se
contentara com o meu cadáver e que eu não vivia senão minha própria obsessão,
magnetizado por minhas idéias fixas, jungido ao pó do sepulcro, durante meio
século, recapitulando quase que interminavelmente o meu ato impensado.
Circunscrito à alcova fatídica, que jazia em minhas reminiscências, passei da
extrema cegueira à desmedida aflição.
Existiria, realmente, um Deus de paz e bondade?
Bastou essa pergunta para que réstias de luz se fizessem sentir em meu espírito
entenebrecido, como relâmpago em noite de espessa treva...
No entanto, para chegar à certeza de Deus, precisava de um caminho.
Esse caminho era ela, a mulher amada.
Queria vê-la, ouvi-la, tocá-la...
E tanto clamei por isso que, em certa ocasião, senti como que uma rajada de
vento forte, arrebatando-me para o seio da noite...
Carregava comigo aquele fatal aposento, contudo, podia agora respirar a brisa
refrescante, entre as sombras noturnas que filtravam, de leve, as irradiações da
lua nova.
Mais ágil, andei apressadamente...
Onde estaria ela, a mulher que estava em mim?
Favorecia-me o sopro do vento e, a minutos breves, alcancei pequeno jardim,
vendo-a sentada com uma criança ao colo...
Ah! somente aqueles que sentiram na vida uma profunda e irremediável saudade
poderão compreender o alarme de meu espírito naquela hora de reencontro!...
Mas, assim que me percebeu, conchegou a criança ao coração e fugiu,
espavorida...
Eu devia ser aos seus olhos um fantasma repelente a regressar do túmulo!
Persegui-a, porém, até que a vi penetrando um quarto humilde... Observei-a,
ajustando-se ao corpo de carne, tal qual a mão em se colando à luva...
Entendi, sem palavras, a nova situação.
Enlaçada a um homem que lhe partilhava o leito, reconheci, sem explicações
verbais, que o filhinho nascituro era meu velho rival e que o homem desconhecido
era-lhe agora o esposo, outro adversário que me cabia vencer.
O ódio passou a estourar-me o crânio.
O cheiro acre e fedentinoso de sangue novamente me ensandeceu.
Beijei-a, delirando em transportes de amor não correspondido, e consegui
instilar-lhe aversão pelo marido e pelo filho recém-nato.
Queria matá-la... desejava que ela vivesse novamente para mim... pretendia
sugar-lhe os eflúvios do coração...
E, durante muitos dias, permaneci naquela casa, desvairado e irresponsável,
envenenando a própria medicação que lhe era administrada...
Consegui dominá-la até o dia em que foi conduzida a um círculo de orações...
E, nesse círculo, vossos amigos me encontraram... Encontraram-me e trouxeram-me
a esta casa...
Com os ensinamentos que me dirigiram, a câmara do crime desapareceu de minha
imaginação... Todas as idéias estagnadas que me limitavam o pensamento, qual se
eu fora o próprio remorso num casulo infernal, desfizeram-se, de pronto, como
escamas de lodo que, em se desintegrando, me libertaram o espírito...
Desde então, fui admitido em uma escola...
Transcorridos seis meses, tornei ao lar que eu me propunha destruir,
transformado pelas lições dos instrutores que vos orientam o santuário.
Novos sentimentos me vibravam no coração.
Compadeci-me daquela que sofria tanto e que tanto se esforçava por reabilitar-se
perante a Lei!
Contemplei-lhe o filhinho e o esposo, tomado de viva compaixão...
Achava-me renovado...
Compreendi então convosco que o coração humano — concha divina — pode guardar
consigo todos os amores...
Observei a extensão de minhas faltas e voltarei à carne em dias breves!
Aquela por quem me perdi ser-me-á devotada mãe... Terei um pai humilde, generoso
e trabalhador, abençoando-me o restabelecimento moral, e, em meu irmão, já
renascido, encontrarei não mais o antagonista, mas o companheiro de provação com
quem restaurarei o destino...
Ante o coração que me estimula a esperança, não mais direi: — «mulher que eu
desejo»! e sim «mãezinha querida!..»
Nossos sentimentos pairarão em esfera mais alta e de seus lábios aprenderei, de
novo, as sublimes palavras: — «Pai Nosso, que estás no Céu...»
Fitar-lhe-ei nos olhos o celeste horizonte e, trabalhando, enxergarei feliz a
senda libertadora...
Ah!... entendereis comigo semelhante ventura?
Creio que sim.
Partirei, desse modo, não para a companhia dos anjos, mas para o convívio dos
homens, refazendo meu próprio caminho e regenerando a própria consciência.
E, abraçando-vos com afetuosa gratidão, saúdo em Nosso Senhor Jesus-Cristo a fé
que nos reúne!...
Terra — abençoado mar de lutas...
Carne — navio da salvação!
Lar — templo de luz e trabalho...
Mãe — santuário de amor!...
Meus amigos, até amanhã!
Bendito seja Deus.
José Gomes