Suicida
I
Desde o momento em que sorvera a mistura venenosa, Marina sentia-se morrer, sem
morrer.
Na queria viver mais. Via-se desprezada. Acariciara o sonho de esposar Jorge e
criar-lhe os filhos. Dois anos de vã esperança.
O pai costumava dizer-lhe: “Cuidado com os rapazes de hoje, nem sempre têm bom
caráter”; ela, porém, achava-o antiquado e exigente. A mãe entretanto, sorria e
deixava passar.
Além disso, como resistir? Jorge assobiava todas as noites. Começou pedindo-lhe
livros.
- Estou em dificuldades com meu professor de latim – dissera.
E levara-lhe a gramática, voltando no outro dia para solicitar informações.
Percebera a manobra, encantada. Desde então, encontravam-se noite a noite. A
princípio comentavam estudos.
Queixavam-se dos professores, criticavam colegas, embora freqüentassem
instituições diferentes. Complicara-se, contudo a conversação. Após quatro
semanas de convivência, iam juntos ao cinema do bairro. E tudo se agravou numa
noite de chuva. Haviam assistido a um filme pitoresco. Uma jovem tímida,
contrariada pela família, entregara-se ao rapaz, com quem fugiu, confiante.
Ninguém poderia dizer o que teria acontecido depois, mas o cinema coroara a
aventura com um beijo.
Sob a marquise, pensavam no tema, mergulhando o olhar um no outro. À frente da
garoa persistente, sentiam-se como numa ilha de encantamento.
- Você teria coragem de acompanhar-me num longo passeio? – perguntou ele, com
intenções ocultas. Ela corara, sem responder. Refletia na heroína do filme. Não
conseguira desvencilhar-se do braço que a envolvera. Ele interpretara-lhe o
silêncio pelo “sim”. Ela não tinha voz para dizer-lhe “não”. Deixou-se conduzir.
Automaticamente. Lembrava-se de tudo... Jorge chamara um táxi. Inebriada,
sentia-se deslizar no asfalto, como quem patinasse acima das nuvens. Sonhava...
Nem viu quando o moço fez sinal ao motorista.
Qual se fora um animal hipnotizado, seguiu o companheiro. Desceram.
Pingos de chuva caíam-lhe nos cabelos de menina e mulher, como se a noite
compassiva desejasse apagar vulcão de sentimentos e idéias a lhe transtornar a
cabeça.
Transpuseram um pequeno portão.
A pequena escada pareceu-lhe um trecho de espaço, à frente do paraíso...
II
Ele apertou um botão que encimava um florão da parede.
Alguns instantes de espera e abre-se a porta.
Senhora gorda e afável atendeu, prestimosa.
- Minha velha amiga – dissera Jorge, sorrindo. E continuou loquaz, enquanto
ocupavam pequena sala. A chuva apoquentara-os, e pediam abrigo por alguns
minutos a fim de conversarem a sós. A dona da casa nem de leve se surpreendera,
e indicou-lhes quarto próximo. O moço tomara-lhe a mão trêmula e arrastou-a
quase. Mal teve ela tempo para relancear os olhos pelo recinto. Um belo leito de
casal estava perto. Na parede um retrato do Cristo. Que fazia ali a imagem do
Cristo?
Recordou em relampagueantes pensamentos repetidas palavras maternas: - “Todos
devemos orar.” Mas não dispunha de espaço mental para ocupar-se do assunto.
Jorge enlaçara-a e as horas se perderam da imaginação, como se o tempo estivesse
morto.
Acordou junto dele, alta madrugada. Lembrou-se do lar, como se fosse uma rosa
despetalada que devesse retornar ao jardim. Chorou.
Jorge despertara, generoso, e acalmou-a.
- Tolinha, não há motivos para lágrimas. Levantaram-se, tornando à sala.
A senhora hospitaleira, embora estremunhada, tinha no rosto a calma das
enfermeiras de plantão.
O moço pediu chá e explicou-lhe algo em voz baixa.
Depois do chá, o táxi, chamado pelo telefone, compareceu.
A viajem de volta não apresentava o sabor da vinda. Entre os dois, agora, o
silêncio.
- Conversaremos amanhã – disse Jorge simplesmente, ao deixá-la em casa.
O coração materno esperava-a.Parecia adivinhar tudo, pela inquietação que
denunciava. - Porque afligir-se, mãezinha? Mentira pela primeira vez, como
passaria a mentir sempre – a chuva atrazou-nos em excesso e descansamos em casa
de Jorge – afirmara, beijando-lhe a face. E não obstante a caratonha do relógio
mostrando as três horas, D.Marcília nada respondeu, suspirando fundo.
III
Desde essa ocasião, aparecera-lhe o outro lado da vida.
Conheceu mais de perto a residência da cancela rosada. Conversou mais
demoradamente com a mulher que velava e conheceu outras clientes do do pequeno
edifício.
Ao fim de quatro meses, sentira-se diferente. Tinha vertigens. Vomitava.
Jorge levou –a ao gabinete de um médico ainda jovem, que lhe deitava olhares
ambíguos.
Revoltava-se diante dele, mas submeteu-se a tratamento.
Processou-se o aborto esperado. Todavia, desde então, tinha sonhos alucinantes.
Via-se perseguida por alguém.Rouquenha voz lhe gritava aos ouvidos: “Mãe,mãe,
por que me mataste?” Acordava, enxugando o suor álgido, no lençol.
Queria ser mãe. Para isso, porém, precisava casar-se.
Jorge, no entanto, exigia-lhe calma. Devia terminar o curso de bacharel. Mas,
nos últimos tempos, fizera-se arredio.
Contava-lhe os sonhos, perturbada. Ele ria-se e falava em consulta ao
psiquiatra. Dizia-se também cansado. Estudos intensivos.
Passavam-se agora semanas de ausência. Telefonava-lhe. Pedia conselhos, rogava
conforto. Ele sempre a dissipar-lhe os temores com a promessa do matrimônio.
Desde o aborto era outra. Parecia-lhe viver com o filho que não nascera.
Sentia-se visitada por idéias estranhas, como vidraça clara atravessada por
largo jogo de sombras.
Na véspera, buscara Jorge na esperança de mais decisivo socorro médico. E
estarrecera-se. O amigo, que sempre considerara noivo em particular, estava com
outra.
Apresentou-a.
- Companheira de infância – informou.
E afirmara, sem rebuço, que pretendia casar-se dentro de poucos dias.
A rival cumprimentou-a, indiferente à dor que a fulminava. Empalidecera. Jorge,
sorridente, conduziu-a a pequena distância e explicou-se.
Não a amava, confessou impassível.
- É melhor terminarmos assim - falou, frio -, antes de mais sérias dificuldades.
Ela implorou em lágrimas.
- Dissuada-se – concluiu quase áspero.
E afastara-se, retomando o braço da jovem que sorria, tranqüila, a ignorar-lhe a
tragédia.
IV
Mundo íntimo desmoronado.
A idéia de suicídio envolveu-a de todo.
Arrastou-se de regresso a casa.
Adquiriu a substância letal.
Escreveu bilhetes.
E, pela manhã, sorvera a porção de uma só vez.
Pavorosa dor irrompeu-lhe na carne, nos nervos, no sangue, nos ossos...
Convulsões sucessivas não lhe permitiam morrer.
Entretanto, ouvia sua própria mãe gritar como louca: “Morta! Morta!”
Ouvia algazarra, nas o próprio sofrimento não lhe conferia o privilégio das
discriminações.. Viu-se carregada. Dois homens colocaram-na em “vasta gaveta”, a
única interpretação que podia dar ao espaço fechado de pequena ambulância.
Não apenas chorava. Rugia em contorções, mas ninguém lhe percebia agora os
terríveis lamentos.
Viu-se atirada, sem qualquer consideração, de encontro ao que lhe pareceu “laje
fria”. Suplicava socorro. Agitava-se.
Ninguém, no entanto, atendia aos seus apelos.
Seis homens aproximaram-se. Um deles, mais experiente, parecia conduzir outros
cinco.
Queria ajoelhar e pedir-lhes a necessária assistência.
Arrependera-se. Desejava retomar o corpo e viver. Pensava no martírio dos pais.
Reconhecia-se jovem ainda.
Poderia sobrepor-se à situação. Trabalharia por vencer. Nenhum dos circunstantes
lhe ouvia os brados. Pareciam desconhece-la, desrespeita-la. E mais que isso,
desnudaram-na.
V
O homem amadurecido afastou-se por minutos como quem se esquecera de trazer
algum remédio a fim de ajuda-la. Dois dos cinco rapazes presentes tocaram-lhe o
corpo. Beliscaram-na.
Alarmou-se, indignada ante o vexame evidente.
O mais velho, longe de garanti-la, fez mais. Tomou de um bisturi e abriu-lhe o
abdômem.
- Assassinos! Assassinos! – estertorava.
Mas a operação prosseguia. Ouvia vozes. Alguém dizia: “Bela mulher!”, enquanto o
cavalheiro amadurecido, em grande avental branco, falava em “cianetos” e “cheiro
de amêndoas amargas”.
Um dos moços, de olhar irônico, exclamou, tateando-lhe o busto: “Porque matar-se
desse modo?”
Sentindo-se em desespero total, clamava que não. Tentara o suicídio, mas
recuara.
- Terminassem a operação! – pedia, em pranto, reconhecendo tratar com jovens
cirurgiões em estudo.
Tinha pressa. Desejava tranqüilizar os pais, refazer a existência. Mas, em meio
das sensações turbilhonárias que lhe atormentavam a alma, sentiu que continuavam
a lhe cortar a carne.
Era demais. Viu-se separada do próprio corpo, como jóia que salta mecanicamente
do escrínio.
E conheceu a verdade,enfim. O corpo que ela própria arruinara apresentava
máscara triste.
Mãos ágeis trabalhavam-lhe as vísceras, separando material de exame necrológico.
Entretanto, ela – Marina, ela mesma – cambaleava, de pé, com todas as dores e
convulsões de momentos antes...
- Mãe! Minha mãe! – clamou aterrada – quero viver! Viver!...
Outra voz, contudo, bramiu-lhe ameaçadora e sarcástica aos ouvidos:
- Mãe, minha mãe, eu também quero viver!...
Procurou com os olhos agoniados quem lhe falava, mas apenas sentiu que braços
vigorosos a aprisionavam.
Lembrou, aturdida, o aborto, os sonhos, a tortura,e o suicídio, e esforçou-se
terrivelmente para voltar e erguer de novo o corpo tombado na mesa fria.
Mais era tarde...
Hilário Silva