O Valor do Trabalho

Ninguém contestava os nobres sentimentos de Cecília Montalvão; entretanto, era de todos sabida sua aversão ao trabalho. No fundo, excelente criatura cheia de conceitos filosóficos, por indicar ao próximo os melhores caminhos. Palestra fácil e encantadora, gestos espontâneos e afetuosos, seduzia quem lhe escutasse o verbo carinhoso. Se a família adotasse outros princípios que não fossem os do Espiritismo cristão, Cecília propenderia talvez à vida conventual. Assim, não ocultava sua admiração pelas moças que, até hoje, de quando em quando se recolhem voluntariamente à sombra do claustro. Mais por ociosidade que por espírito de adoração a Deus, entrevia nos véus freiráticos o refúgio ideal. No entanto, porque o Espiritismo não lhe possibilitava ensejo de ausentar-se do ambiente doméstico, a pretexto de fé religiosa, cobrava-se em longas conversações sobre os mundos felizes. Dedicava-se, fervorosa, a toda expressão literária referente às esferas de paz reservadas aos que muito sofreram nos serviços humanos. As mensagens do Além, que descrevessem tais lugares de repouso, eram conservadas com especial dedicação. As descrições dos planetas superiores causavam-lhe arroubos indefiníveis. Cecília não cuidava de outra coisa que não fosse a antevisão das glórias celestiais. Embalde a velha mãezinha a convocava à lavanderia ou à copa. Nem mesmo nas ocasiões em que o genitor se recolhia ao leito, tomado de tenaz enxaqueca, a jovem abandonava semelhantes atitudes de alheamento às tarefas necessárias. Não raro discutia sobre as festividades magnificentes a que teria direito, após a morte do corpo. Ao seu pensar, o círculo evolutivo que a esperava devia ser imenso jardim de Espíritos redimidos, povoado de perfumes e zéfiros harmoniosos.

No grupo íntimo de preces da família, costumava cooperar certa entidade generosa e evolvida, que se dava a conhecer pelo nome de Eliezer. Cecília interpretava-lhe as advertências de modo puramente individual. Se o amigo exortava ao trabalho, não admitia que a indicação se referisse a serviços na Terra.

– Este planeta – dizia enfaticamente – é lugar indigno, escura paragem de almas criminosas e enfermas. Seria irrespirável o ar terrestre se não fora o antegozo dos mundos felizes. Oh! como deve ser sublimes vida em Júpiter, a beleza dos dias em Saturno, seguidos de noites iluminadas de anéis resplandecentes! O pântano terrestre envenena as almas bem formadas e não poderemos fugir à repugnância e ao tédio doloroso!...

– Mais, minha filha – objetava a genitora complacente –, não devemos adotar opiniões tão extremistas. Não é o planeta inútil e mau assim. Não será justo interpretar nossa existência terrena como fase de preparação educativa? Sempre notei que qualquer trabalho, desde que honesto, é título de glória para a criatura...

Todavia, antes que a velha completasse os conceitos, voltava a filha intempestivamente, olvidando carinhosas observações de Eliezer:

– Nada disso! A senhora, mamãe, cristalizada como se encontra, entre pratos e caçarolas, não me poderá compreender. Suas observações resultam da rotina cruel, que se esforça por não quebrar. Este mundo é cárcere sombrio, onde tudo é miséria angustiosa e creio mesmo que o maior esforço, por extinguir sofrimentos, seria igual ao de alguém que desejasse apagar um vulcão com algumas gotas dágua. Tudo inútil. Estou convencida de que a Terra foi criada para triste destinação. Só a morte física pode restituir-nos a liberdade. Transportar-nos-emos a esferas ditosas, conheceremos paraísos iluminados e sem-fim.

A senhora Montalvão contemplava a filha, lamentando-lhe a atitude mental, e, esganando os móveis, por não perder tempo, respondia tranquila, encerrando a conversa:

– Prefiro crer, minha filha, que tanto a vela de sebo, como a estrela luminosa, representam dádivas de Deus às criaturas. E, se não sabemos valorizar ainda a vela pequenina que está neste mundo, como nos atreveremos a invadir a grandeza dos astros?

E antes que a moça voltasse a considerações novas, a bondosa genitora corria à cozinha, a cuidar do jantar.

Qualquer tentativa, tendente a esclarecer a jovem, redundava infrutífera. Solicitações enérgicas dos pais, pareceres criteriosos dos amigos, advertências do plano espiritual, eram relegados a completo esquecimento.

Fervorosa admiradora da vida e obras de Teresa de Jesus, a notável religiosa da Espanha do século XVI, Cecília endereçava-lhe ardentes rogativas, idealizando a missionária do Carmelo num jardim de delicias, diariamente visitada por Jesus e seus anjos. Não queria saber se a grande mística trabalhava, ignorava-lhe as privações e sofrimentos, para só recordá-la em genuflexão ao pé dos altares.

Acentuando-se-lhe a preguiça mental, vivia segregada, longe de tudo e de todos.

Essa atitude influía vigorosamente no seu físico, e muito antes de trinta anos Cecília regressava ao plano espiritual, absolutamente envolvida na atmosfera de ilusões. Por isso mesmo, dolorosas lhe foram as surpresas da vida real.

Despertou além-túmulo, sem lobrigar vivalma. Depois de longos dias solitários e tristes, a caminhar sem destino, encontrou uma Colônia espiritual, onde, no entanto, não havia criaturas em ociosidade. Todos trabalhavam afanosamente. Pediu, receosa, admissão à presença do respectivo diretor. Recebeu-a generoso ancião, em espaçoso recinto. Observando-lhe, porém, as lânguidas atitudes, o velhinho amorável sentenciou:

– Minha filha, não posso hoje dispor de muito tempo ao seu lado, pelo que espero manifeste seus propósitos sem delongas.

Estupefata ante o que ouvia, ela expôs suas mágoas e desilusões, com lágrimas amargurosas. Supunha que após a morte do corpo não houvesse trabalho. Estava confundida em angustioso abatimento. Sorriu o ancião benévolo e acrescentou:

– Essas fantasias são neblinas no céu dos pensamentos. Esqueça-as, bondosa menina. Não se gaste em referências pessoais.

E entremostrando preocupação de serviço, concluía:

– Por não termos descanso para hoje, gostaria dissesse em que lhe posso ser útil.

Desapontada, lembrou a jovem a bondade de Eliezer e explicou o desejo de encontrá-lo.

O velhinho pensou alguns momentos e esclareceu:

– Não disponho de auxiliares que possam ajudá-la, mas posso orientá-la quanto à direção que precisa tomar.

Colocada a caminho, Cecília Montalvão viu-se perseguida de elementos inferiores; figuras repugnantes apresentavam-se-lhe na estrada, perguntando pelas regiões de repouso. Depois de emoções amargas, chegou à antiga residência, onde os familiares não lhe perceberam a nova forma. Ia retirar-se em pranto, quando viu alguém sair da cozinha num halo de luz. Era o generoso Eliezer que a ela se dirigia com sorriso afetuoso. Cecília caiu-lhe nos braços fraternais e queixou-se, lacrimosa :

– Ah! meu venerando amigo, estou abandonada de todos. Compadecei-vos de mim!... Guiai-me, por caridade, aos caminhos da paz!...

– Acalma-te – murmurou o benfeitor plácido e gentil –, hoje estou bastante ocupado; entretanto, aconselho-te a orar fervorosamente, renovando resoluções.

– Ocupado? – bradou a jovem, desesperada – não sois instrutor na revelação espiritual?

– Sim, sim, de dias a dias coopero no serviço das verdades divinas, mas tenho outras responsabilidades a atender.

– E que tereis no dia de hoje, em caráter tão imperativo, abandonando-me também à maneira dos outros? – interrogou a recém-desencarnada revelando funda revolta.

– Devo auxiliar tua mãezinha nos encargos domésticos – ajuntou Eliezer brandamente –, logo mais tenho serviço junto a irmãos nossos. Não te recordas do tintureiro da esquina próxima? Preciso contribuir no tratamento da filha, que se feriu no trabalho, ontem à noite, por excesso de fadiga no ganha-pão. Lembras-te do nosso Natércio, o pedreiro? O pobrezinho caiu hoje de grande altura, machucou-se bastante e aguarda-me no hospital.

A interlocutora estava envergonhada. Somente agora se reconhecia vítima de si mesma.

– Não poderíeis localizar-me aqui, auxiliando a mamãe? – perguntou suplicante.

– É impossível, por enquanto – esclareceu o amigo solícito –, só podemos cooperar com êxito no trabalho para cuja execução nos preparamos devidamente. A preocupação de fugir aos espanadores e caçarolas tornou-te inapta ao concurso eficiente. Estiveste mais de vinte e cinco anos terrestres, nesta casa, e teimaste em não compreender a laboriosa tarefa da genitora. Não é possível que te habilites a ombrear com ela no trabalho, de um instante para outro.

A jovem compreendeu o alcance da observação e chorou amargamente. Abraçou-a Eliezer, com ternura fraternal, e falou :

– Procura o conforto da prece. Não eras tão amiga de Teresa? Esqueceste-a? Essa grande servidora de Jesus tem a seu cargo numerosas tarefas. Se puder, não te deixará sem a luz do serviço.

Cecília ouviu o conselho e orou como nunca havia feito. Lágrimas quentes lavavam-lhe o rosto entristecido. Incoercível força de atração requisitou-a a imenso núcleo de atividade espiritual, região essa, porém, que conseguiu atingir somente após dificuldades e obstáculos oriundos da influenciação de seres inferiores, identificados com as sombras que lhe envolviam o coração.

Em lugar de maravilhosos encantos naturais, a ex-religiosa de Espanha recebeu-a generosamente. Ante as angustiosas comoções que paralisavam a voz da recém-chegada, a servidora do Cristo esclareceu amorável:

– Nossas oficinas de trabalho estão hoje grandemente sobrecarregadas de compromissos; mas as tuas preces me tocaram o coração. Conforme vês, Cecília, depois de abandonares a oportunidade de realização divina, que o mundo te oferecia, só encontraste, sem deveres, as criaturas infernais. Onde haja noção do Bem e da Verdade, há imensas tarefas a realizar.

Vendo que a jovem soluçava, continuou :

– Estás cansada e abatida, enquanto os que trabalham no bem se envolvem no manto generoso da paz, mesmo nas esferas mais rudes do globo terrestre. Pedes medicamento para teus males e recurso contra tentações; no entanto, para ambos os casos eu somente poderia aconselhar o remédio do trabalho. Não aquele que apenas saiba receitar obrigações para outrem, ou que objetive remunerações e vantagens isoladas; mas o trabalho sentido e vivido dentro de ti mesma. Este é o guia na descoberta de nossas possibilidades divinas, no processo evolutivo do aperfeiçoamento universal. Nele, Cecília, a alma edifica a própria casa, cria valores para a ascensão sublime. Andaste enganada no mundo quando julgavas que o serviço fosse obrigação exclusiva dos homens. Ele é apanágio de todas as criaturas, terrestres e celestes. A verdadeira fé não te poderia ensinar tal fantasia. Sempre te ouvi as orações; no entanto, nunca abriste o espírito às minhas respostas fraternais. Ninguém vive aqui em beatitude descuidosa, quando tantas almas heróicas sofrem e lutam nobremente na Terra.

Enquanto a voz da bondosa serva do Evangelho fazia uma pausa, Cecília ajuntou de mãos postas:

– Benfeitora amada, concedei-me lugar entre aqueles que cooperam convosco!...

Teresa, sinceramente comovida, esclareceu com bondade:

– Os quadros de meus serviços estão completos, mas tenho uma oportunidade a oferecer-te. Requisitam minha atenção num velho asilo de loucos, na Espanha.

Desejas ajudar-me ali?

Cecília não cabia em si de gratidão e júbilo.

E, naquele mesmo dia, voltava à Terra com obrigações espirituais, convicta de que, auxiliando os desequilibrados, havia de encontrar o próprio equilíbrio.


Irmão X