Em Ação de Graças
Por que razão continuam os mortos a escrever para os vivos? Não sabem outra
coisa?
Com a difusão do Espiritismo, recrudesceu a reação do comodismo. Algumas escolas
religiosas, interessadas no “deixa estar como está para ver como fica”, ensinam
que os mortos não voltam e, embora exaltem a divindade do Espírito, apregoam que
o homem é simplesmente pó e que em pó se tornará. Por isso, as criaturas mais
generosas deitam algumas pitadinhas de poeira sobre os cadáveres dos amigos,
quando a carne volve à comunhão mais íntima com a Natureza, e, se consagram
verdadeira afeição ao morto, mandam repetir nos sepulcros o velho epitáfio –
“que a terra te seja leve”. Os companheiros mais sérios, terminado o funeral,
ainda lêem algumas linhas do Eclesiastes, no capítulo em que o profeta alude às
cinzas das vaidades humanas; entretanto, mesmo esses, no dia seguinte, entram no
gracioso cordão das anedotas biográficas do extinto. Há sempre alguma coisa
engraçada a recordar. Quando voltam eventualmente à necrópole, pisam-lhe,
indiferentes, os ossos encerrados na sepultura despercebida.
Desconhecem o pensamento que Horácio enunciou em sua Arte Poética, há muitos
séculos: “Estamos destinados a morrer, nós e tudo que é nosso.” E, em razão
disso, os homens de carne querem destruir, calmamente, as oportunidades
edificantes do dia.
Aos defuntos, o repouso eterno. Para eles, a ronda alegre da vida.
Enquanto se desdobra o complicado serviço das exéquias, há sempre mãos piedosas
que fazem excelente refeição para quantos reverenciem os trespassados.
É preciso concertar providências e inventariar os bens que ficaram. Se o morto
deixa pecúlios substanciosos, a dor pesa mais fortemente nos olhos; mas, se o
espólio é constituído por débitos comprovados, o sofrimento pesa muito mais no
coração, pelo agravo das responsabilidades.
De qualquer modo, porém, que os falecidos se arranjem no país das sombra, porque
os vivos são bons equilibristas no trapézio do grande circo da existência
humana. A necessidade modifica as situações e a folhinha mostrará anotações
diárias e sempre novas do tempo.
Os mortos, contudo, que se faziam sentir, com raridade, desde a recuada época em
que Saul lhes proibia as manifestações, para recorrer, ele mesmo, à vidente de
Endor, a fim de ouvir os conselhos de Samuel, então asilado no “outro mundo”,
começaram a invadir o planeta com as suas mensagens e sinais, desde o século
XIX.
– Afinal de contas, que movimento era aquele? – perguntavam os mais tolerantes.
Os mensageiros invisíveis, que iniciaram o empreendimento como telegrafistas do
Além, batendo nas paredes e nos móveis da residência modesta de obscuro vilarejo
americano, rapidamente espalhavam manifestações pelas mais cultas capitais
européias. Os cépticos não conseguiam compreender. No século da locomotiva, do
telefone, do radium e da anestesia, tudo aquilo seria superstição.
E começou a batalha gigantesca, entre as novas luzes e as velhas sombras,
secularmente estabelecidas.
Junto do trigo dos espiritistas sinceros, cresceu o joio dos espiritófobos
intransigentes.
No Brasil dos últimos tempos, acirrou-se o duelo das opiniões.
Que motivo compele os mortos a se comunicarem com os vivos? Não teriam
encontrado bastante sossego no “outro mundo”? São assim agradáveis as seduções
do vale das sombras, a ponto de se desinteressarem das prometidas delícias do
Céu?
O fogo cruzado da crítica estabelece a conceituarão apressada. Os canhões da
grande imprensa assestam contra doutrinadores e médiuns, que lhes suportam os
disparos.
É a tempestade, porém, que seleciona e purifica. E essa tormenta, em nossa
terra, é provocada por homens curiosos e cultos, alegres e gozadores. Quase
todos eles, no fundo, são como Alcibíades, o discípulo amado de Sócrates, que
era naturalmente generoso, filho admirável da fortuna e da inteligência, mas que
estimava o exibicionismo e chamava para si a atenção popular, a qualquer preço,
ainda mesmo cortando a cauda do cão que merecia o louvor de Atenas.
No que se refere às minhas atividades humildes de comentarista desencarnado,
estou satisfeito com as irrequietas interrogações dos nossos patrícios, embora
não possa, nem deva responder a elas.
Narra-nos Lucas, no capítulo dezessete de seu Evangelho, que dez leprosos foram
atendidos pelo Senhor, que lhes recomendou se mostrassem aos sacerdotes do
Templo. Cumpriram-lhe a ordem e foram curados. Um deles, samaritano desprezível,
vendo-se reintegrado na saúde, regressou, encantado e feliz, aos pés do Cristo,
rendendo graças.
Também eu, curado da lepra da vaidade que me ensombrava a alma, pela compaixão
do Divino Médico, torno ao serviço dele, para testemunhar reconhecimento. Dos
outros leprosos que se limparam em minha companhia, não posso dar notícias. Sei
apenas de mim que voltei, não a serviço dos homens, mas em tarefa gratulatória,
revelando-me aos companheiros de luta, para que procurem o Senhor, não como
doentes, e sim na qualidade de cooperadores fiéis.
Diz, porém, a velha quadra que “até nas flores se encontra a diferença da
sorte”. Assim será sempre, em todos os setores da Natureza. As andorinhas, por
exemplo, acompanham a Primavera, voando no espaço amplo, mas os sapos cantam,
alegres, quando há mais lodo nas águas barrentas do pântano.
Irmão X