O Homem que Matava o Tempo
Aquelas respostas de Anselmo Figueiredo eram invariáveis.
Convocado à fé religiosa, o rapaz se desviava de qualquer consideração mais
grave relativamente à vida. Filhos de pais devotados ao Espiritismo cristão,
apesar da assistência carinhosa do genitor e dos comoventes apelos maternais,
Anselmo afirmava sempre não haver atingido ocasião adequada.
No seu parecer, o pensamento religioso quadrava tão somente a pessoas avançadas
em idade. Entendia que era preciso desperdiçar a mocidade, gastar energias,
estontear-se no prazer e, depois, quando chegasse a perspectiva da morte do
corpo, resolveria os problemas da fé. Considerava indispensável aproveitar a
saúde, para atender a caprichos inferiores. Não permanecia na Terra? Que fazia a
maior parte dos homens? Atendiam a desejos, através de comidas e bebidas, com os
jogos e prazeres do tempo.
Falava-lhe o pai amoroso, de quando em quando:
— Anselmo, já não és mais uma criança frágil. Creio que deves refletir
maduramente quanto ao nosso destino eterno.
— Ora, meu pai — replicava contrafeito —, lá vem o senhor com as histórias de
religião. Tenha paciência, não lhe pedi conselhos. Quando tiver sua idade,
talvez pense nisto. Este mundo é bastante miserável para que se não aproveitem
os dias tão curtos da mocidade.
E, depois de gesto irritante, arrematava:
— É necessário matar o tempo.
De outras vezes, comparecia a generosa mãezinha no concerto:
— Meu filho, meu filho, repara que estamos na Terra de passagem somente. Vamos
aprender as lições da fé. Jesus espera-nos sempre com o perdão aos nossos erros.
Anselmo, meu querido, porque não freqüentas conosco a escola de iluminação
espiritual? Seria isto prazer tão grande para tua velha mãe!... Encontraríamos
juntos a fonte das águas eternas...
O moço esboçava um sorriso irônico, explicando-se:
— Mamãe, não sou eu criminoso, nem desviado. Creio sinceramente na existência de
Deus; mas que quer a senhora? Estou jovem, preciso viver a única ocasião de
alegrias na Terra. A senhora e papai estimam os estudos evangélicos, enquanto
que eu dou preferência aos cassinos. Que fazer? Não temos culpa, no que concerne
às diferenças de predileções. Além disso, como não pode deixar de reconhecer, o
período aproveitável da existência é muito enfadonho. É necessário matar o
tempo, mamãe!
A pobre matrona suspirava triste e a luta continuava.
Bancário, com remuneração excelente, Anselmo dissipava os vencimentos entre o
jogo e os prazeres alcoólicos, comprometendo-se, por vezes, em vultosos
empréstimos que o genitor era compelido a resgatar com sacrifícios. Se faltava
dinheiro para as extravagâncias, flagelava o coração materno com observações
ingratas. E, se os amigos da casa, em visita à família, recordavam ao
imprevidente a solução dos problemas da fé, respondia irredutível:
— Que desejam vocês? Observo-lhes o esforço, mas não estimo as tendências
religiosas. Admito que semelhantes impulsos chegam com a idade avançada, ou com
a moléstia imprevista. Em sã consciência, coisa alguma exige de mim a
manifestação religiosa propriamente dita. Não sou velho, nem sou enfermo.
Conseqüentemente, minha conduta é outra. O homem normal e tranqüilo sabe matar o
tempo. É o que faço sem perturbar a cabeça.
Após fitar a reduzida assembléia de amigos, como se enfrentasse multidões do
mundo, de olhar dominador, Anselmo dirigiu-se ironicamente para uma velhinha
simpática, exclamando:
— Que me diz a senhora, Dona Romualda? Acaso, não se aproximou do Espiritismo,
em virtude de suas velhas cólicas? Teria pensado em religião antes disto?
A anciã humilde replicava, bondosa:
— Ah! sim, Anselmo, talvez tenhas razão.
— E o senhor, “seu” Manuel — dirigia-se o moço, atrevidamente, a um negociante
idoso —, teria buscado o Espiritismo, se não lhe aparecessem as varizes e o
reumatismo?
O interpelado, entretanto, que não tinha a paciência de Dona Romualda, respondia
firme:
— Mas, meu amigo, é o caso de abençoar as enfermidades. Se é que está esperando
por elas a fim de renovar atitudes mentais, formulo votos para que a Providência
Divina o atenda breve.
O rapaz esboçava gesto de aborrecimento e dava-se pressa em sair para a rua,
murmurando entre os dentes:
— Estou muito distante de tais perturbações e, até que venha ocasião apropriada,
matemos o tempo.
De nada valiam observações dos genitores, conselhos amigos, convites fraternais.
A qualquer aborrecimento comum, desdobrava-se Anselmo em palavras
blasfematórias. Se advertido, mostrava enorme fecundidade por evitar raciocínios
nobres, declarando-se em época inoportuna a qualquer cogitação de natureza
espiritual. O bilhar, o pano verde, as aventuras do desejo menos digno lhe
empolgavam a mente. Convidado inúmeras vezes pela bondade divina a traçar
diretrizes superiores, com ao destino sagrado, Anselmo Figueiredo fugira a todas
as oportunidades de iluminação íntima. Preferira as sombras espessas da
ignorância a qualquer pequenino serviço de auto-educação. Sua ficha individual
na Terra estava cheia de anotações inferiores: ociosidade, libertinagem, negação
de atividades úteis. A qualquer interpelação carinhosa, vinha à baila o velho
estribilho: não havia atingido o tempo próprio, sentia-se distante da realização
espiritual, aceitava as verdades eternas; entretanto, declarava-se sem a
madureza necessária ao trabalho da própria edificação. E assim, o filho do casal
Figueiredo atingiu os quarenta e oito anos, sempre se sentindo demasiadamente
jovem para aproximar-se do conhecimento divino. Vivera à moda de borboleta
distraída, sumamente interessado em matar o tempo.
Contudo, a morte não podia esperar por Anselmo, como os amigos do mundo, e
chegou o dia em que o imprevidente não conseguiu abrir as pálpebras do corpo,
ingressando em trevas densas, que lhe pareciam infinitas. Percebeu sem
dificuldade que não mais participava do quadro terrestre. Sentia-se de posse dos
olhos, mas figuravam-se-lhe agora duas lâmpadas mortas. Chorou, pediu,
praguejou. Não mais entes amorosos a convidá-lo para o banquete do amor. Não
mais a ternura maternal. Todavia, quando o silêncio absoluto não lhe balsamizava
as dilacerações da mente em febre, ouvia gargalhadas irônicas, indagações
maliciosas e ditos perversos. Nada valiam lágrimas e rogativas. Semelhava-se a
um cego perdido em região ignorada, sem família, sem ninguém. Nunca pôde retomar
o caminho de casa, ansioso por ouvir agora a palavra dos pais, a observação dos
amigos carinhosos. Anos passaram sobre anos, sem que o arrependido pudesse
contar o tempo de amarguras.
Houve, porém, um dia em que, após angustiosa prece, entre lágrimas, se fez
claridade súbita em sua longa noite. O penitente ajoelhou-se, deslumbrado.
Alguém lhe visitava a caverna escura. De repente, na doce luz que se formara em
torno, apareceu-lhe a amada genitora a fitá-lo, com extrema doçura.
— Mãe! minha mãe! — bradou o infeliz — socorre-me por piedade!...
Anselmo, em pranto, tentou alcançar a figura luminosa que o contemplava
entristecida, mas debalde. A senhora Figueiredo, não obstante se fazer visível,
parecia distante. O desventurado procurou correr para atingi-la, ansioso por se
retirar das trevas para sempre. A mãezinha devotada, contudo, alçou a destra
compassiva e falou emocionada:
— É inútil, por enquanto, meu filho! — Estamos separados pelo abismo que cavaste
com as próprias mãos. Há mais de dez anos aguardava ansiosamente este encontro;
mas, em que estado lastimável te vejo, filho meu!...
— Querida mãe! — clamou o mendigo de luz —, por que me esqueceu o Senhor do
Universo? Abandonado de todos, sou um fantasma de dor, sem o auxílio de ninguém.
Por que tamanho padecimento? Por quê?
Enquanto o desditoso arquejava em soluços convulsivos, a genitora esclareceu,
triste:
— Deus nunca te esqueceu, foste tu que lhe esqueceste as bênçãos no caminho do
mundo. Cuidaste apenas de matar o tempo e o teu tempo agora permanece morto.
Trabalha para ressuscitá-lo, meu filho, procurando obter nova oportunidade de
serviço, perante a bondade do Senhor. As lutas do coração desfazem as trevas que
rodeiam a alma. Não esqueças a longa estrada que ainda tens a percorrer...
E, antes que Alselmo pudesse formular novas interpelações, a luz espiritual
apagou-se devagarzinho, voltando a paisagem de sombras, a fim de que o
imprudente do passado conseguisse acender a luz da própria alma, com vistas ao
porvir.
Irmão X