Em Oração
Aberta a doce conversação da noite, em torno da Boa Nova, a esposa de Zebedeu perguntou, reverente, dirigindo-se a Jesus: — Senhor, como se verificará nossa jornada para o Reino Divino? O Cristo pareceu meditar alguns momentos e explanou:
— Num vale de longínquo país, alguns judeus cegos de nascença habituaram-se à treva e à miséria em que viviam, e muitos anos permaneciam na furna em que jaziam mergulhados, quando iluminado irmão de raça por lá passou e falou-lhes da profunda beleza do Monte Sião, em Jerusalém, onde o povo escolhido adora o Supremo Pai.
Ao lhe ouvirem a narrativa, todos os cegos experimentaram grande comoção e lastimaram a impossibilidade em que se mantinham.
O vidente amigo, porém, esclareceu-lhes que a situação não era irremediável.
Se tivessem coragem de aplicar a si mesmos determinadas disciplinas, com abstinência de variados prazeres de natureza inferior a que se haviam acostumado nas trevas, poderiam recobrar o contacto com a luz, avançando na direção da cidade santa.
A maioria dos ouvintes recebeu as sugestões com manifesta ironia, assegurando que os progenitores e outros antepassados haviam sido igualmente cegos e que se lhes afigurava impossível a reabilitação dos órgãos visuais.
Um deles, porém, moço corajoso e sereno, acreditou no método aconselhado e aplicouo.
Entregou-se primeiramente às disciplinas apontadas e, depois de quatro anos de meditações, trabalho intenso e observação pessoal da Lei, com jejuns e preces, obteve a visão.
Quase enlouqueceu de alegria.
Em êxtase, contou aos companheiros a sublimidade da experiência, comentando a largueza do céu e a beleza das árvores próximas; contudo, ninguém acreditou nele.
Não obstante ser tomado por demente, o rapaz não desanimou.
Agora, enxergava o caminho e conseguiria avançar.
Ausentou-se do vale fundo, mas, sem qualquer noção de rumo, vagueou dias e noites, em estado aflitivo.
Atacado por lobos e víboras em grande número, usava a maior cautela, reconhecendo a própria inexperiência, até que, em certa manhã, abeirando-se de um esconderijo cavado na rocha, para colher mel silvestre, foi aprisionado por um ladrão que lhe exigiu a bolsa; entretanto, como não possuísse dinheiro, deixou-se escravizar pelo malfeitor que durante cinco anos sucessivos o reteve em trabalho incessante.
O servo, porém, agiu com tamanha bondade, multiplicando os exemplos de abnegação, que o espírito do perseguidor se modificou, fazendo-se mais brando e reformando-se para o bem, restituindo-lhe a liberdade.
Emancipado de novo, o crente fiel recomeçou a jornada, porque a ânsia de alcançar o templo divino povoava-lhe a mente.
Pôs-se a caminho, distribuindo fraternidade e alegria com todos os viajores que lhe cruzassem a estrada, mas, atingindo um vilarejo onde a autoridade era exercida com demasiado rigor, foi encarcerado como sendo um criminoso desconhecido; no entanto, sabendo que seria traído pelas próprias forças insuficientes, caso buscasse reagir, deixou-se trancafiar até que o problema fosse resolvido, o que reclamou longo tempo.
Nunca, entretanto, se revelou inativo no exercício do bem.
Na própria cadeia que lhe feria a inocência, encontrou vastíssimas oportunidades para demonstrar boa-vontade, amor e tolerância, sensibilizando as autoridades, que o libertaram enfim,.
O ideal de atingir o santuário sublime absorvia-lhe o pensamento e prosseguiu na marcha; todavia, somente depois de vinte anos de lutas e provas, das quais sempre saía vitorioso, é que conseguiu chegar ao Monte Sião para adorar o Supremo Senhor.
O Mestre interrompeu-se, vagueou o olhar pela sala silenciosa e rematou: — Assim é a caminhada do homem para o Reino Celestial.
Antes de tudo, é preciso reconhecer a sua condição de cego e aplicar a si mesmo os remédios indicados nos mandamentos divinos.
Alcançado o conhecimento, apesar da zombaria de quantos o rodeiam em posição de ignorância, é compelido a marchar por si mesmo, e sozinho quase sempre, do escuro vale terrestre para o monte da claridade divina, aproveitando todas as oportunidades de servir, indistintamente, ainda mesmo aos próprios inimigos e perseguidores.
Quando o seguidor do bem compreende o dever de mobilizar todos os recursos da jornada, em silêncio, sem perda de tempo com reclamações e censuras, que somente denunciam inferioridade, então estará em condições de alcançar o Reino, dentro do menor prazo, porque viverá plasmando as próprias asas para o vôo divino, usando para isso a disciplina de si mesmo e o trabalho incessante pela paz e alegria de todos.
Neio Lúcio