Os Negros no Brasil
Sob o domínio espanhol, Portugal sofria todas as conseqüências da sua desídia
e imprevidência. A Espanha guardava o cetro de um império resplandecente e
maravilhoso. Suas frotas poderosas cobriam as águas de todos os mares,
carregando os tesouros do México e do Peru, do Brasil e das Índias, os quais
faziam afluir para Madrid a mais elevada percentagem de ouro do mundo inteiro.
Até hoje, comenta-se com espírito a célebre frase de Francisco I, exprimindo o
seu desejo de conhecer a disposição testamentária de Adão, que dividira o mundo
entre espanhóis e portugueses e o deserdara.
A esse tempo, a terra do Evangelho não é mais conhecida pelo nome suave de Santa
Cruz. À força das expressões comuns, dos negociantes que vinham buscar as suas
fartas provisões de pau-brasil, seu nome se prende agora ao privilégio das suas
madeiras. Os missionários da colônia protestaram contra a inovação adotada; mas,
as falanges do Infinito sancionaram a novidade imposta pelo espírito geral,
considerando as terríveis crueldades cometidas na Baía de Guanabara, em nome do
mais caridoso dos símbolos. A sanção de Ismael à escolha da nova expressão
objetivava resguardar a pátria do Cruzeiro dos perigos da Inquisição, que na
Europa fomentava os mais hediondos movimentos em nome do Senhor.
A situação, no Brasil, sob todos os pontos de vista, como a da metrópole
portuguesa, era dolorosa e cruel, embora governado por funcionário de Lisboa,
segundo as combinações estipuladas na Península.
A raça aborígine e a raça negra sofriam toda sorte de humilhações e vexames. Os
índios procuravam o Norte, em busca dos seus amigos franceses, que, expulsos do
Rio por Mem de Sá, concentravam suas atividades no Maranhão, onde pretendiam
fundar a França Equinocial, preocupado seriamente as autoridades da colônia. A
situação gera era a mais deplorável. Ismael e seus abnegados colaboradores
sofrem intensamente em seus trabalhos árduos e quase improfícuos, no sentido de
organizar o Instituto sagrado da família nas florestas inóspitas, onde os
brancos não dispensavam consideração às leis humanas ou divinas, na condição de
superioridade que se atribuíam.
Aos céus ascendem os aflitivos apelos dos obreiros invisíveis.
- Senhor! _ exclama Ismael nas suas preocupações _ estendei até nós o manto da
vossa infinita misericórdia. Enviai-nos o socorro das vossas bênçãos divinas,
para que as nossas vozes sejam ouvidas pelos espíritos que aqui procuram
edificar uma pátria nova. Vêem-se os infortúnios das raças flageladas e
sofredoras.
Uma voz suave e meiga lhe responde do Infinito:
- Ismael, nas tuas obrigações e trabalhos, considera que a dor é a eterna
lapidária de todos os espíritos e que o Nosso Pai não concede aos filhos fardo
superior às suas forças, nas lutas evolutivas. Abriga aí, na sagrada extensão
dos territórios do país do Evangelho, todos os infortunados e todos os
infelizes. No meu coração ecoam as súplicas dolorosas de todos os seres
sofredores, que se agrupam nas regiões inferiores dos espaços próximos da Terra.
Agasalha-os no solo bendito que recebe as irradiações do símbolo estrelado,
alimentando-os com o pão substancioso dos sofrimentos depuradores e das lágrimas
que lavam todas as manchas da alma. Leva a essas coletividades espirituais,
sinceramente arrependidas do seu passado obscuro e delituoso, a tua bandeira de
paz e de esperança; ensina-lhes a ler os preceitos da minha doutrina, nos
códigos dourados do sofrimento.
Ismael sente que luzes compassivas e misericordiosas lhe visitam o coração e
parte com os seus companheiros, em busca dos planos da erraticidade mais
próximas da Terra. Aí se encontram antigos batalhadores das cruzadas, senhores
feudais da Idade Média, padres e inquisidores, espíritos rebeldes e revoltados,
perdidos nos caminhos cheios da treva das usas consciências polutas. O emissário
do Senhor desdobra nessas grutas do sofrimento sua bandeira de luz, como uma
estrela d’alva, assinalando o fim de profunda noite.
- Irmãos _ exorta ele comovido _ até ao coração do Divino Mestre chegaram os
vossos apelos de socorro espiritual. Da sua esfera de brandos arrebóis
cristalinos, ordena a sua misericórdia que as vossas lágrimas sejam enxugadas
para sempre. Um ensejo novo de trabalho se apresenta para a redenção das vossas
almas, desviadas nos desfiladeiros do remorso e do crime. Há uma terra nova,
onde Jesus implantará o seu Evangelho de caridade, de perdão e de amor
indefiníveis. Nos séculos futuros, essa pátria generosa será a terra da
promissão para todos os infelizes. Dos seus celeiros inesgotáveis sairá o pão de
luz para todas as almas; mas, preciso se faz nos voltemos para o seu solo virgem
e exuberante a construir-lhe as bases com os nossos sacrifícios e devotamentos.
Ali encontrareis, nos carreiros aspérrimos da dor que depura e santifica, a
porta estreita para o céu de que nos fala Jesus nas suas lições divinas.
Aprendereis, no livro dos padecimentos salvadores, a gravar na consciência os
sagrados parágrafos da virtude e do amor, na epopéia da luz da solidariedade, na
expiação e no sofrimento. Sabei que todas as aquisições da filosofia e da
ciência terrestres são flores sem perfume, ou luzes sem calor e sem vida, quando
não se tocam das claridades do sentimento. Aqueles de vós que desejarem o
supremo cominho venham para nossa oficina de amor, de humildade e redenção.
E aí, nas estradas escuras e tristes da angústia espiritual, viu-se, então, que
falanges imensas, ansiosas e extasiadas, avançavam com fervorosa coragem para as
clareiras abertas naquela mansão de dor e de sombras. Todos queriam, no seu
testemunho de agradecimento, beijar a bandeira sacrossanta do mensageiro divino.
O seu emblema _ Deus, Cristo e Caridade _ refulgia agora nas penumbras,
iluminando todas as coisas e clarificando todos os caminhos. As esperanças
reunidas, daqueles seres infortunados e sofredores, faziam a vibração de luz que
então aclarava todas as sendas e abriam todos os entendimentos para a
compreensão das finalidades, das determinações sublimes do Alto.
Essas entidades evolvidas pela ciência, mas pobres de humildade e de amor,
ouviram os apelos de Ismael e vieram construir as bases da terra do Cruzeiro.
Foram elas que abriram os caminhos da terra virgem, sustentando nos ombros
feridos o peso de todos os trabalhos. Nesse filão de claridades interiores,
buscaram as pérolas da humildade e do sentimento com que se apresentaram mais
tarde a Jesus, no dia, que lhes raiou, de redenção e de glória.
Foi por isso que os negros do Brasil se incorporaram à raça nova, constituindo
um dos baluates da nacionalidade, em todos os tempos. Com as suas abnegações
santificantes e os seus prantos abençoados, fizeram brotar as alvoradas do
trabalho, depois das noites primitivas. Na Pátria do Evangelho têm eles sido
estadistas, médicos, artistas, poetas e escritores, representando as
personalidades mais eminentes. Em nenhuma outra parte do planeta alcançaram,
ainda, a elevada e justa posição que lhes compete junto das outras raças do
orbe, como acontece no Brasil, onde vivem nos ambientes da mais pura
fraternidade. É que o Senhor lhes assinalou o papel na formação da terra do
Evangelho e foi por esse motivo que eles deram, desde o princípio de sua
localização no país, os mais extraordinários exemplos de sacrifício à raça
branca. Todos os grandes sentimentos que nobilitam as almas humanas eles os
demonstraram e foi ainda o coração deles, dedicado ao ideal da solidariedade
humana, que ensinou aos europeus a lição do trabalho e da obediência, na comuna
fraterna dos Palmares, onde não havia nem ricos nem pobres e onde resistiram com
o seu esforço e a sua perseverança, por mais de setenta anos, escrevendo, com a
morte pela liberdade, o mais belo poema dos seus martírios nas terras
americanas.
Por toda parte, no país, há um ensinamento caricioso do seu resignado heroísmo,
e foi por essa razão que a terra brasileira soube reconhecer-lhes as abnegações
santificadas, incorporando-os definitivamente à grande família, de cuja direção
muitas vezes participam, sem jamais se esquecer o Brasil de que os seus maiores
filhos se criaram para a grandeza da pátria, no generoso seio africano.
Humberto de Campos