O Carnaval no Rio

O Carnaval no Rio de Janeiro, em 1939, foi mais uma nova realização da alegria carioca, entornando nas almas da agigantada Sebastianópolis o vinho dos prazeres fáceis e das vibrações ruidosas, que produz o temporário esquecimento das mais nobres responsabilidades da vida.

Um escritor, encarnado ou desencarnado, que venha falar contra os excessos do período carnavalesco, no Rio, costuma perder o seu tempo e o seu esforço sagrados.

Os três dias de Momo são integralmente destinados ao levantamento das máscaras com que todo sujeito sai à rua nos demais dias do ano, e a maioria dos leitores não deseja sacrificar a paz de seus hábitos mais antigos. 

Mate-se o vizinho, gritem as estatísticas, protestem os religiosos, chorem os foliões que não puderam sair da intimidade doméstica, o imperativo do momento é buscar o turbilhão da Avenida ou descer dos morros pobres e tristes para a Praça Onze, em face do apelo irresistível de Momo e de seus incontáveis seguidores.

Tanto cuidado dedicou-se no Rio ao reinado bufo que o governo amparou as tendências generalizadas do povo, porque o homem da administração, preocupado com os fenômenos diplomáticos e com as tabelas orçamentárias, não dispõe de tempo para atender ao total das necessidades dos governados, apreciando, pela rama, as suas predileções, cumprindo à sua psicologia política satisfazer às exigências populares, para que as massas o deixem em paz, na solenidade do gabinete, dentro da solução dos seus graves problemas administrativos de ordem imediata.

Foi assim que atraímos grandes correntes turísticas, não mais para a contemplação das belezas topográficas da cidade valorosa de São Sebastião, mas para o conhecimento das paixões desencadeadas do nosso povo em meneios de Terpsícore africana.

Neste ano, intensificaram-se as folganças, com a nota dos marinheiros ianques e suecos, que se entregaram totalmente à folia.

O movimento carioca causou uma vida, nova. Não faltou mesmo a nota alegre e pitoresca da criança que nasceu em Niterói, em plena rua, sobre um leito improvisado de serpentinas.

Os jornais e as estações radiofônicas não tiveram outro assunto que não fosse o da vitória de Momo no seu reinado extravagante de orgia. Os comerciantes se pronunciaram.

A cerveja, o chope e outras bebidas tiveram o consumo aproximado de cinco milhões de garrafas. Movimentação extraordinária e lucros assombrosos. Prosperaram os negócios da Central e da Cantareira.

Houve, porém, outra estatística menos conhecida.

O Delegado de Menores recebeu quatrocentas e doze reclamações, sobre crianças desaparecidas. Só no Posto Central da Assistência Municipal foram atendidas mais de mil e cem pessoas.

A par da progressão dos negócios, multiplicaram-se as agressões, proliferou o crime, intensificaram-se as quedas na viu pública, os acidentes de toda natureza, os desastres de automóveis, as expressões de alcoolismo, as tentativas de suicídio, as intoxicações, os casos de hospitalização imediata, sem nos referirmos aos dolorosos dramas da sombra, que ficaram na penumbra, receosos da inquirição policial e da crítica dos vizinhos.

O Carnaval passou qual onda furiosa, levando, como sempre, todos os bons sentimentos ainda vacilantes, que aguardavam a âncora da fé pura, a fim de se consolidarem no mar infinito ala Vida.

Diante das vibrações carnavalescas do povo carioca, nós nos calamos, porém, como o homem que lastima as irreflexões de um amigo, silenciando, quanto ao seu proceder, em face das qualidades generosas que lhe exornam a personalidade.

Somos dos que crêem na eficácia da educação para o extermínio completo desses excessos dolorosos, porquanto todo o problema é de ordem educativa.

A propósito dessa necessidade imediata do nosso povo, apraz-me recordar, nesta página, a lenda da maçã podre, que alhures, sem poder determinar, no momento, o objeto preciso de minha lembrança.

Reunidos na praça pública, alguns velhos patrícios romanos falavam cios desvios do Império e da penosa decadência dos seus costumes em família.

Alguns, possuidores de esperança, apelavam para a guerra ou para novos decretos de força que compelissem os seus compatriotas ao cumprimento dos mais sagrados deveres da existência. Contudo, um dos componentes do grupo tomou de uma grande maçã podre, exclamando:

- "Esta maçã, meus amigos, é o símbolo do atual Império. Nunca mais voltaremos ao seio das nossas antigas tradições!...

No dia em que esta fruta voltar a ser bela, retomando a sua pureza primitiva, também nós teríamos restaurado a alegria de nossa vida, com a volta aos sagrados costumes!..."

Os companheiros seguiam-lhe a palavra, com atenção, quando o mais velho e o mais experiente de todos respondeu com austera nobreza:

- "Enganais-vos, meu amigo!...

Poderemos renovar a nossa vida, como essa fruta poderá vir, mais tarde, a ser nova e bela.

Tomemos as sementes desta maçã condenada e deitemo-las, de novo, no seio da terra generosa.

Cultivemos os seus rebentos com cuidado e amor e, sob o amparo do tempo, o nosso esforço vê-la-á multiplicada em novas maçãs frescas e formosas!...

Façamos assim também com o nosso povo.

Busquemos semear na ala das gerações florescentes os princípios sagrados de nossas tradições e dos nossos hábitos e, mais tarde, toda podridão terá passado na esteira do Tempo, para caminharmos pelo futuro adentro com a pureza do nosso idealismo!"

O Carnaval é a maçã podre do Rio de Janeiro. Na sua intimidade, porém, está a semente generosa dos elevados sentimentos da alma brasileira.

Cultivemos essas sementes sagradas no espírito das gerações que surgem. Que se congreguem todos os núcleos do bem e, muito especialmente, os do Espiritismo cristão, para as sublimadas realizações desse grande labor educativo, e a podridão terá passado com o tempo, a fim de que possamos trabalhar, em nosso sagrado idealismo, sob as luzes generosas e augustas do Cruzeiro.


Humberto de Campos