O Prazer
Há frases corriqueiras que carregam um universo de conceitos
norteadores de vidas. Outro dia, no vestiário de uma academia, ouvi
obrigatoriamente o diálogo entre duas mulheres que comentavam em alto e bom som
as delícias e os excessos do final de semana e concluíram dizendo o seguinte:
“Vamos sofrer bastante nas bicicletas para aliviar a culpa.”
Foi um dos muitos episódios que me lembraram orientações e textos recebidos no
trabalho com o amigo espiritual José Antônio abordando a dificuldade que muitas
pessoas enfrentam de compreender o prazer, o supérfluo, o necessário e o que
realmente é educar, libertando a consciência e auxiliando o crescimento
espiritual. Aquele diálogo expressava a síntese do pensamento comum associando o
prazer com a culpa e a necessidade de impor-se sofrimento para se redimir.
Usando os conhecimentos que temos e os que a espiritualidade transmite desde a
Codificação, veremos que precisamos mudar esse padrão comum - se por ventura for
o nosso - de compreensão dos prazeres que a vida oferece e buscar desenvolver
com eles uma relação sadia e livre de opressões.
Definir o que seja prazer é ingressar num terreno filosófico amplo e complexo,
havendo correntes para todos os lados. Dispensaremos teorias e conceitos,
cientes de que cada um de nós sente o prazer e o conhece. Experimentando na vida
o seu poder e exercitando o relacionamento com ele, ficaremos com a noção de
senso comum que ele se liga a sensações agradáveis e que constitui algo digno de
ser perseguido, despertando nossos desejos.
É fácil notar que o prazer está profundamente arraigado na natureza humana,
refletindo um desejo do Criador, portanto encerra uma lição, tem uma finalidade
e não pode ser considerado mau sob pena de ingratidão e incompreensão.
Nosso organismo é feito para experimentá-lo e cada um dos sentidos físicos
oportunizam uma forma de prazer específica. Somos dotados da capacidade de
sentir prazer sexual, e no exercício das virtudes e na prática da mediunidade
encontramos prazer não de ordem física, mas prazeres de ordem moral que nos dão
sensações de bem-estar e gratificação.
A busca das sensações ligadas ao prazer físico ou moral impulsiona nosso
comportamento. Observando a conduta humana, Sócrates, já em sua época, insistia
freqüentemente no ponto que não pode haver desejo sem privação, sem falta da
coisa desejada e sem mescla de um certo sofrimento, mas que o apetite só podia
ser provocado pela representação, a imagem ou a lembrança da coisa que dá
prazer. Ele concluiu que não poderia haver desejo a não ser na alma, pois se o
corpo é atingido pela privação é a alma e somente ela que, através da lembrança,
pode tornar presente a coisa desejada e despertar a necessidade do ato de
satisfação. Eis o mecanismo que orienta nossas ações: o desejo que leva ao ato,
o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo.
Isso está escrito em todos nós, faz parte da experiência que desenvolvemos com a
vida. Resta perguntar: com que força somos levados pelos prazeres e pelos
desejos?
Vítor Hugo propôs que exercitássemos o conhecimento e o domínio do material ao
escrever o poema “Desejos”:
“Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga: “Isso é meu”,
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.”
Podemos refletir sobre nossa relação com os prazeres e fazer o mesmo:
colocarmo-nos frente a frente com eles e indagar quem é o senhor de quem.
Aspiramos à evolução e, buscando nos apontar o caminho correto para a conquista
do equilíbrio e a ampliação da compreensão da vida, a espiritualidade tem
dedicado considerável esforço ensinando que voltemos a atenção ao nosso
interior. Temas como: autoconhecimento, estudo da personalidade, das paixões,
dos sentimentos e outros têm sido recorrentes para nos alertar aquilo que não
nasce do íntimo, do eu profundo, que não tem base na consciência do ser
espiritual, não encontra sustentação e pouco impulsiona o progresso pessoal.
Para tanto, o estudo dos prazeres e de sua função constitui um capítulo
fundamental. A proliferação dos grupos de auto-ajuda como Alcoólatras Anônimos,
Vigilantes do Peso, Sexólatras Anônimos e outros do gênero mostram a necessidade
de pensar, conhecer e compreender os prazeres, pois, na base dos comportamentos
que levam as pessoas a procura destes trabalhos, está o uso desequilibrado do
prazer, que acaba viciando e fazendo com que percam o domínio sobre si mesmos.
Esse importante tema permeia o pensamento filosófico desde a Antigüidade Kardec
questionou a espiritualidade sobre ele e classificou essas perguntas na Lei de
Conservação.
Costumamos dizer que viver é um direito, esquecendo que é também uma necessidade
dada por Deus para o aperfeiçoamento espiritual e Ele providenciou o necessário
para esta escola cumprir seu papel oportunizando aprendizado e experiência.
Se antes concluímos que a tudo que nos cerca se liga um prazer e que isso é
natural e bom, agora surgem outras questões: se existem necessidades e os meios
de satisfazê-las e isso está na ordem natural, onde nasce o domínio do prazer
sobre o ser? Por que nos deixar dominar por comida, bebida, sexo, desejo de ter
coisas, e etc?
Falta a consciência de pautar nosso comportamento diferenciando o que é
necessário e o que é supérfluo (excesso). Criamos necessidades artificiais,
exageradas, não sabemos nos regrar e distinguir o necessário e o supérfluo.
Deixamos o ego falar mais alto e o egoísmo domina o uso dos bens da terra .
Queremos tudo e todos e isso ultrapassa o necessário. Esses conflitos no
entendimento e uso dos prazeres são seculares e a história mostra que em
diversas épocas e de muitas maneiras foram feitas tentativas de educar esse uso.
Infelizmente, as mais difundidas se centram em noções que incutem culpa, via
noções de pecado, na vã tentativa de forçar uma disciplina meramente exterior.
Reprimem o uso, não o educam e essa conduta não pode servir a quem tem a
convicção da Lei de Progresso e a confiança na sabedoria divina.
Tudo caminha de encontro ao objetivo maior da Criação: o aperfeiçoamento de seus
seres. Através do prazer, um instrumento de ensino tão eficiente quanto à dor,
Deus nos incita ao cumprimento de nossas missões e desenvolve nossa razão que
deverá nos privar dos excessos, aprendendo o limite do necessário e exercitando
o domínio, não a repressão dos prazeres materiais, fazendo-nos distinguir que só
é meritória a privação voluntária dos prazeres inúteis que solicitam os excessos
degenerando em vícios nocivos ao Ser.
Consolidar a compreensão de que os prazeres são naturais, necessários e isentos
de culpas, dada sua utilidade à existência e que lhes dar bom uso, sendo senhor
e não escravo deles, liberta do jugo das paixões e das jaulas de conceitos
castradores e frustrantes que levam pessoas ao sofrimento inútil, pois
incentivam a inglória luta da criatura com a natureza ofertada pelo Criador.
Por isso Sócrates ensinava: “O mais real dos homens é o rei de si mesmo.”
Ana Cristina Vargas - Delfos