O Impacto Espírita
A tese das três revelações, colocada e definida pelo
Espiritismo, implica certos problemas que em geral não são bem compreendidos. Há
quem pergunte, por exemplo: “Antes da I Revelação, a mosaica, Deus não havia
revelado nada aos homens?”
É claro que sim. O Espiritismo ensina que o processo da revelação é contínuo,
incessante, realizando-se através da mediunidade. Mas acontece que a revelação
de Moisés assinalou o primeiro momento decisivo da espiritualização do mundo.
Foi o marco histórico da concepção monoteísta. Com Moisés, e conseqüentemente
com a Bíblia(codificação da I Revelação), os homens aprenderam a substituir os
deuses formais do passado pelo Deus verdadeiro e único, em espírito e verdade. E
aprenderam também que Deus é providência, criou o mundo e o dirige, conduzindo
os homens através da história.
Até Moisés, o mundo é politeísta e mágico. O pensamento humano não é histórico,
mas mitológico. Com a I Revelação surge o monoteísmo e o historicismo. Essa a
razão de a chamarmos “primeira”, pois é decisiva quanto à modificação dos rumos
humanos, em direção a um futuro de constante progresso. O monoteísmo unificará,
daí por diante, o sentimento e a vontade, e o historicismo dirigirá a razão. Não
se trata mais de revelações parciais, de ensaios preliminares, mas de uma
revelação que abre as portas da universalidade, da compreensão total do universo
e da vida. Com essa revelação inicia-se aquilo que hoje chamamos de Civilização
Cristã do Ocidente. No Oriente continuarão ainda a desenvolver-se as revelações
parciais e locais, até que o impacto do pensamento ocidental comece a modificar
o panorama de suas velhas concepções.
O desenvolvimento natural da primeira revelação é o aparecimento de Cristo. Sua
mensagem é codificada nos Evangelhos, seguidos dos demais livros que, com
aqueles, formam o Novo Testamento. Ao monoteísmo e ao historicismo a II
Revelação adiciona o ingrediente moral da salvação. A concepção do Deus único e
espiritual, e do desenvolvimento histórico do mundo, dirigido pela Providência,
enriquece-se com um elemento novo: o finalismo. Deus fez o mundo e o dirige com
uma finalidade definida. O dogma bíblico da queda revela o seu sentido, que a
alegoria ocultava: o homem surgiu, na Terra, simples e ignorante, para adquirir
por si mesmo a complexidade moral e a sabedoria espiritual, tornando-se digno do
Criador. Esse finalismo traz em si mesmo o impulso do universalismo. Deus não é
apenas o Criador , mas é principalmente o Pai. Nunca essa palavra havia tido tão
amplo sentido. Nos Evangelhos, Deus é Pai. Em conseqüência, todas as criaturas
são irmãs.
Claro que uma revolução tão profunda não poderia realizar-se num dia, nem mesmo
num século ou num milênio. A mensagem cristã, que completava a mosaica, teria de
penetrar o mundo como a água da chuva penetra o chão, misturando-se a ele e às
suas impurezas. Primeiro, havia o barro. E desse barro, dessa mistura de
politeísmo com o monoteísmo, do mito com a história, do acaso com o finalismo,
do acidental com a providência, do incerto com a salvação(certeza da fé),
surgiria o novo homem, feito à imagem e semelhança do novo Deus. Mas um homem
ainda incompleto, em fase de modelagem. Por isso Jesus anunciou uma nova
revelação, que ainda viria, depois que ele fosse “para o Pai”, formulando a
promessa do Consolador, no evangelho de João.
Somente decorridos quase dois milênios, amassado esse barro de terra e luz, de
elementos humanos e divinos, pôde então surgir a III Revelação. E o que trouxe
ela? Um novo ingrediente, para misturar os anteriores, completando a fórmula
divina: o monismo. Essa palavra, interpretada sem sentido espiritual, resume a
concepção espírita do universo. A paternidade universal de Deus deixa de ser uma
formulação teórica para tornar-se prática. A fraternidade universal não decorre
mais de um princípio abstrato. A reencarnação justifica o mandamento do amor do
próximo, no plano imediato da vida física. A lei de causa e efeito mostra a
unidade fundamental do cosmos. O túmulo vazio dos relatos evangélicos adquire um
sentido simbólico, pois a morte é substituída pela ressurreição, e essa se
despoja do aspecto mítico do passado, para apresentar-se com um sentido
histórico, na sucessão temporal imediata das formas vitais. Por outro lado, a
concepção monista do universo abre as portas à compreensão do processo de
intercâmbio espiritual. Desaparece a barreira que separava o plano espiritual do
plano material. Homens e espíritos podem confabular, permutar experiências
conscientemente, marchar de mãos dadas rumo à perfeição espiritual, que é o
objetivo comum.
É evidente que todos esses ingredientes reunidos pelas revelações sucessivas
sempre existiram no mundo. Mas somente com elas, e graças a elas, puderam
juntar-se numa forma vital e portanto dinâmica, eficiente, constituindo aquilo
que Dilthey chamaria “a consciência metafísica do ocidente”. No desenrolar
histórico das três revelações, esses ingredientes passaram de potência a ato,
para usarmos a linguagem aristotélica. E assim chegamos ao momento em que esses
elementos entram em ação efetiva no mundo, para transformá-lo. A III Revelação,
ao Espiritismo, coube a função de completar o sistema, dar-lhe a demão final e
dinamizá-lo na prática. Esse gigantesco trabalho ainda não está realizado, mas
desenvolve-se de maneira auspiciosa. O mundo inteiro está sofrendo o impacto do
Espiritismo, em nosso século, como no século primeiro sofreu o impacto do
Cristianismo.
Herculano Pires