Amor e Auxílio
Rolava a conversação em torno de proteção espiritual, quando Jonaquim,
respeitado mentor de comunicabilidades cristãs, narrou com a voz aquecida de
bondade e sabedoria:
- Ouvi de um instrutor amigo que Mardônio Tércio, convertido ao Cristianismo,
nos primeiros dias do Evangelho em Roma, se fêz um discípulo tão valioso e
humilde do Senhor que, para logo, teve o seu nome abençoado nos Céus. Patrício
de enorme fortuna, desde muito cedo abandonado pela mulher que demandara Cartago
para uma vida independente, Mardônio, assim que penetrou a essência da doutrina
do Cristo, dividiu todos os bens com o filho único, Marcos Lício, e entregou-se
à caridade e à renovação. Instrumento fiel do bem, abria os ouvidos a todos os
apelos edificantes, fossem dos mensageiros de Jesus que lhe solicitavam a
execução de tarefas benemerentes ou dos irmãos encarnados nos mais baixos
degraus da penúria. Fizera-se espontaneamente o apoio das viúvas desamparadas e
o tutor afetuoso dos órfãos. Além, disso, mantinha horários, cada dia, para o
serviço de assistência direta aos doentes e sofredores, administrando-lhes
alimento e socorro com as próprias mãos
Ao contrário do pai, o jovem Marcos se chafurdou em absurda viciação. Aos trinta
de idade, parecia um flagelo ambulante. Distinguindo-se entre as forças do ouro
e do poder, não vacilava em abusar das regalias que desfrutava para manter-se no
banditismo dourado que os privilégios sociais tanta vez conservam impune.
Dois caminhos tão diferentes produziram, em consequência, duas posições
diametralmente opostas no Mundo Espiritual. Sobrevindo a morte, Mardônio cresceu
em tamanho merecimento que foi elevado à esfera do Cristo, acessível aos
servidores que pudessem colaborar com ele, o Senhor, nos dias mais torturados do
Evangelho nascente. Marcos, porém, arrojou-se a escuro antro das zonas
inferiores, onde, conquanto afeito à revolta e à perversão, qual se trouxesse a
consciência revestida em grossa carapaça de insensibilidade.
O genitor, convertido em apóstolo da abnegação, visitava o filho, no vale
tenebroso a que se chumbava, sem que o filho, cego de espírito, lhe assinalasse
a presença; e tanto se condoeu daquele com quem partilhara o afeto e o sangue
que, certo feita, num rasgo de apaixonado amor pelo rebento querido, suplicou ao
Senhor permissão para levá-lo consigo para as Alturas, a fim de assisti-lo, de
mais perto.
Jesus sorriu compreensivo e aquiesceu, diante da ternura ingênua do devotado
cooperador, e, antes que amigos experientes lhe administrassem avisos, lá se foi
Mardônio para a cava sombria, onde o filho se embriagava de loucura e ilusão...
Renteando com Marcos, positivamente distante de qualquer noção de
responsabilidade, aplicou-lhe passes magnéticos, anestesiou-lhe os sentidos e,
tão logo o beneficiado cedeu ao repouso, colocou-o enternecidamente nos ombros,
à feição de carga preciosa, e, com imensos cuidados, transportou-o para os
Céus...
Instalado num dos sítios mais singelos do Plano Superior, o recém-chegado,
porém, usufruía luz mais radiante que a do dias terrestres, e, tão depressa
acordou sob o encantamento paternal, viu-se coberto de fluidos repugnantes que
lhe davam a impressão de ser um doente empastado de lama enquistada. Marcos se
confrontou com os circunstantes, que se moviam em corpos tênues e luminosos, e
passou a gritar impropérios e insultos. Ao pai que intentou reconfortá-lo,
procurou esbofetear sem misericórdia, afirmando que não pedira e nem desejara a
mudança. Exortado a respeitar o nome e a casa do Senhor, injuriou o ambiente com
palavras e idéias de zombaria e ingratidão. Parecia uma fera desatrelada,
buscando enlamear um fonte de luz. Interferiram amigos e o rebelado caiu de novo
em prostração, sob hipnose benéfica...
Jonaquim fêz novo intervalo, e, porque se interrompera em apontamento culminante
da historia, um dos companheiros interrompeu:
- E daí? Mardônio se viu coibido de amparar o filho a quem amava?
O instrutor explicou:
- Sim, meus amigos, Mardônio acabou compreendendo que nem Deus violenta filho
algum, em nome do bem, e que o bem jamais foge à paciência, a fim de ajudar...
Por isso, reconduziu Marcos ao antro de onde o arrancara e, sem nada perder em
ternura e esperança, até que o filho quisesse ou pudesse de lá sair para novos
passos no caminho da evolução, o ex-patrício, por noventa e dois anos
consecutivos, desceu diariamente ao vale das trevas, oferecendo ao filho, de
cada vez, a bênção de uma prece, uma frase esclarecedora e um naco de pão.
- Mas, isso não é o mesmo que acentuar a impraticabilidade do socorro? – aventou
um dos presentes. – Não seria mais justo relegar o necessitado ao próprio
destino para que ele mesmo cogitasse de si?
Jonaquim sorriu expressivamente e rematou:
- Não temos o direito de pôr em dúvida o poder e a eficiência da lei de auxílio.
A renovação conseguida por noventa e dois anos de devotamento talvez custasse,
sem eles, noventa e dois séculos. O amor, para auxiliar, aprende a repetir.
Irmão X