Boca Torta

Antes de sair para lecionar Evangelho às crianças, no templo espírita, D. Rosália chamou a jovem que lhe atendia à cozinha e, guardando certa porção de goiabada no armário, avisou:

- Guilhermina, peço que reserve o doce para as visitas que estou esperando.

Daí a instantes, Joaninha, a caçula da casa, veio à copa e retirou da prateleira pequeno bolo que destinava a uma colega que sempre lhe pedia merenda.

E seguiu a mãezinha para a aula.

A preleção do dia versava sobre a mentira, e perante mais de trinta crianças D. Rosália contou vários casos fatais de meninos mentirosos, como aquela história do garoto que enganava sempre a todos e acabou morrendo afogado, porque julgavam estivesse a brincar.

A miúda assembléia escutava com assombro.

- E depois disso tudo – esclarecia a professora -, sempre ouvi dizer que as pessoas mentirosas trazem defeitos na boca. Algumas perdem a língua, outras ficam de lábios tortos.

Finda a aula, todos os meninos estavam muito bem impressionados.

De novo em casa e ao tomar os chinelos para descanso, a dona de casa é procurada por jovem da vizinhança.

- D. Rosália – diz respeitosa -, tia Cota mandou pedir à senhora um pedaço de goiabada, se a senhora tiver...

- Ah! minha filha, hoje não temos doce algum – foi a resposta.

Joaninha, porém, que ouvia em silêncio, falou de pronto:

- Tem sim, mamãe.

- Ora essa! – disse a mãezinha, desapontada – acaso teremos doces sem que eu saiba?

- Está no armário. Vamos lá.

D. Rosália seguiu a filhinha e confirmou que realmente se enganara e, sorrindo, embora corada de vergonha, entregou toda a goiabada existente à vizinha, que se despediu com sincero agradecimento.

Em seguida, a professora de Evangelho sentou-se pensativa...

Mas, ao vê-la nesse estado, a pequenina, que não passava dos cinco anos de idade, abeirou-se dela, abraçou-a e disse simplesmente:

- Mãezinha, eu sei que a senhora não sabia onde estava a goiabada. Eu tive, foi, muito medo de a senhora ficar com a boca torta...

D. Rosália, porém, afagou-a, com mais carinho, e falou:

- Não se preocupe, minha filha. Tudo está muito bem. Nossas visitas de hoje não terão doce, mas sua mãe terá a consciência tranqüila.


Hilário Silva