Panelinha?
A expressão que o leitor lê como título integra o acervo de expressões
populares, dentro de certo regionalismo e até de gírias. Ela indica o conjunto de pessoas que se agregam por afinidade ou interesses comuns. Isso ocorre na infância, mocidade, na madureza e até mesmo na velhice, funcionando como uma espécie de ímã que atrai os afins e causa certo distanciamento (em alguns casos até isolamento) daqueles que não sintonizam nos mesmos interesses. Em virtude da ocorrência, sucedem disputas – principalmente as virtuais ou mentais –, ciúmes, invejas e mesmo rivalidades.
No fundo, em síntese mesmo, ela significa a existência de pessoas afins que se
unem em grupos – para qualquer área de atividade humana – e podem gerar
benefícios ou grandes estragos. É o caso de se dizer de pessoas com altos
objetivos filantrópicos, por exemplo, que se unem em fundações e associações que
visam socorrer as dificuldades humanas na área da saúde ou outra; ou, por outro
lado, de pessoas equivocadas que se unem em objetivos nada éticos, como o
tráfico de entorpecentes, planejamento de seqüestro, roubos e outros graves
desvios morais.
Normalmente, a expressão tem conotação pejorativa e é usada por aqueles que se
sentem excluídos, traídos, marginalizados mesmo em alguns casos. Mas, quando um
grupo de pessoas está unido pela afinidade de idéias e ideais, trabalhando por
uma boa causa – seja lá qual for –, a acusação pejorativa de “panelinha” para
referir-se ao grupo visado (e repetimos, normalmente usado por quem se sente
excluído), é injusta, imerecida e digamos, chega ser cruel, descaridosa.
Vejamos que antes de acusarmos um grupo de “panelinha” é preciso conhecer “a
fundo” o que fazem, a que se dedicam, que objetivo os move. E, ao mesmo tempo,
por que nos sentimos excluídos, por que não integramos o mesmo grupo? Fomos
impedidos? Há reservas? Somos capazes de nos comprometermos com os mesmos
objetivos a que se dedicam? Temos o mesmo grau de desprendimento e dedicação? E,
por nossa vez, somos capazes de vencer nossos próprios melindres?
Essas questões todas devem ser ponderadas antes de acusações gratuitas e sem
fundamento, embora o dicionário defina a palavra como “grupo de pessoas que
desdenha os interesses da coletividade”. Como nos referimos aos grupos assim
acusados, injustamente, usamos entre aspas.
Afinal, pessoas unidas pelos mesmos ideais produzem grandes realizações em favor
da coletividade. Afinam-se entre si, entendem-se, completam-se. E que direito
temos nós de acusá-los com a feia expressão que intitula o presente artigo?
Temos esse direito e conhecimento tal de seus objetivos para assim acusá-los?
Infelizmente, a expressão também é usada entre os espíritas que, em situações
infelizes de divergências doutrinárias ou de posicionamentos, acusam-se
mutuamente, em atitude incoerente com a própria proposta espírita,
esquecendo-nos que esta visa o aprimoramento moral de seus adeptos. Busquemos,
todavia, o pensamento do Codificador. Ele traz valiosos apontamentos e que muito
podem nos ajudar. Tais reflexões vão diretamente a temas que podemos denominar,
por exemplo entre outros, como Filtros para participação em reuniões mediúnicas,
Afastamento de elementos perturbadores, Seleção de integrantes, Formação de
equipe, etc.
Em O Livro dos Médiuns, no capítulo XXX- Regulamento da Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas, encontramos: “(...) Artigo 3 – A Sociedade não admite senão
pessoas que simpatizam com seus princípios e com objetivo de seus trabalhos;
(...) exclui todos aqueles que poderiam suscitar elementos de perturbação no
seio das reuniões, seja por um espírito de hostilidade e de oposição
sistemática, seja por qualquer outra causa, fazendo, assim, perder o tempo em
discussões inúteis. Todos os membros se devem, reciprocamente, benevolência e
bom proceder; devem, em todas as circunstâncias, colocar o bem geral acima das
questões pessoais e de amor-próprio. (...) Artigo 6 – A Sociedade limitará, se
julgar necessário, o número de associados livres e de membros titulares. (...)
Artigo 19 – Todo membro tem o direito de pedir a chamada à ordem contra quem se
afaste das conveniências na discussão, ou perturbe as sessões de um modo
qualquer. (...) Três chamada à ordem, no espaço de um ano, levam de direito à
eliminação do membro que nelas houver incorrido, qualquer que seja a sua
categoria. (...) Artigo 22 – Aquele que perturbe a ordem (...) pode ser
convidado a se retirar e, em todos os casos, disso terá feita menção na lista de
admissão, e a entrada lhe será interditada no futuro (...)”
Para evitar nova transcrição, é de bom alvitre consultar os itens 330 e 331
(capítulo XXIX da segunda parte), no mesmo livro, para compreender-se a questão
da homogeneidade e a influência do meio na qualidade das reuniões, levando-se em
conta que cada pessoa sempre traz consigo espíritos que simpatizam com suas
tendências e que exercem considerável influência sobre a reunião, havendo pois
necessidade, para o bom êxito das reuniões, de uma seleção de seus integrantes.
Claro que não nos referimos aqui às reuniões públicas. E são valorosas também as
argumentações dos itens 340 e 341, na mesma ordem de pensamento.
Também na Revista Espírita (publicação fundada pelo Codificador em 1858), edição
de junho de 1862, em matéria com o título Princípio Vital das Sociedades
Espíritas, há oportuna consideração do Codificador. Ele publicou carta que
recebeu, contestando opinião de um Espírito (publicada na edição de abril de
1862 e assinada por Gérard Codemberg) sobre o afastamento de integrantes,
acusando a situação de descaridosa. Kardec fez suas observações e afirmou:
“(...) mantenho que não há reunião espírita séria possível sem homogeneidade.
Por toda parte onde há divergência de opinião, há tendência a fazer prevalecer a
sua, desejo de impor suas idéias ou sua vontade; daí discussões, dissenções,
depois dissolução; isto é inevitável, e é o que ocorre em todas as sociedades,
qualquer que seja seu objeto, onde cada um quer caminhar em caminhos diferentes.
(...) Quando um Espírito diz que é preciso afastá-las, tem razão, porque a
existência da reunião a isso está ligada. (...)”
Continuando seus bem fundamentados argumentos, para os quais convidamos o leitor
conhecer na íntegra, Kardec refere-se a outra comunicação – que inclusive está
na seqüência das páginas daquela edição –, com o título O Espiritismo
filosófico, ditada com outras palavras, mas com o mesmo objetivo. Diz Bernardin,
o autor espiritual: “(...) Examinai bem, ao vosso redor, se não há falsos
irmãos, curiosos, incrédulos. Se assim se encontram, pedi-lhes, com doçura, com
caridade, para se retirarem. Se resistem, contentai-vos em pedir com fervor, ao
Senhor, para esclarecê-los, e numa outra vez, não os admitais em vossos
trabalhos. Não recebais, entre vós, senão os homens simples que querem procurar
a verdade e o progresso. (...)” E completa Kardec, com muita firmeza: Quer
dizer, em outras palavras, desembaraçai-vos polidamente daqueles que vos
entravam.
Ainda em Obras Póstumas, no capítulo Constituição do Espiritismo, item VIII – Do
Programa de Crenças, Kardec enfatiza: “A condição absoluta de vitalidade para
toda reunião ou associação, qualquer que seja o objeto, é a homogeneidade, quer
dizer, a unidade de vistas, de princípios e de sentimentos, a tendência para um
mesmo objetivo determinado, em uma palavra, a comunhão de pensamentos (...).
Toda reunião formada de elementos heterogêneos leva em si os germes de sua
própria dissolução, porque ela se compõe de interesses divergentes, materiais,
ou de amor-próprio, tendendo a um objetivo diferente, que se combatem, e muito
raramente estão dispostos a fazer concessões ao interesse comum, ou mesmo à
razão; que sofrem a opinião da maioria se não puderem fazê-lo de outro modo, mas
que não se reúnem jamais francamente (...).”
É claro que os textos integrais completam ainda mais o raciocínio e seria
inviável simplesmente transcrevê-los, o que contraria o objetivo da matéria. O
objetivo mesmo é remeter o leitor ao estudo e leitura integrais de todas as
indicações aqui enumeradas.
Portanto, a união de pessoas por princípios de amizade, afinidade, é algo
absolutamente natural e benéfico para o êxito de iniciativas, especialmente
aquelas vinculadas à proposta espírita. Há uma seleção que se opera
naturalmente, por vias de assimilação fluídica mesmo. A acusação pejorativa da
existência de panelinhas para grupos afins e identificados com o bem, deixa pois
de fundamentar-se na verdade, para estar entregue ao melindre de seus autores.
E, se realmente, elas existirem com outros objetivos, não merecem nossa
preocupação. Há mais o que fazer. O ideal é que nos identifiquemos com o bem e
busquemos, sem dúvida, integrar equipes e grupos dedicados cujas ações visem o
progresso moral de seus integrantes e algo realizem em favor da coletividade.
No que se refere, porém, ao tema aqui tratado, nada melhor do que entender o que
sempre pretendeu o Codificador: a homogeneidade como condição de êxito para as
tarefas espíritas.
Para ilustrar, concluímos com uma situação para reflexão: imaginemos as tarefas
assistenciais e normalmente composta de voluntários. Um mínimo de entendimento
entre seus integrantes é suficiente, ainda que não haja tanta homogeneidade. O
mesmo já não se pode dizer de uma reunião mediúnica ou de uma tarefa
doutrinária. No primeiro caso, a movimentação é intensa, desde a chegada de
novos integrantes até o afastamento de outros, com presença de rodízio
permanente no grupo, sem expressivos prejuízos para a tarefa. O mesmo já não
pode ser aplicado para o segundo, onde a homogeneidade é fator essencial. O
singelo exemplo já permite pensar que não se trata de uma panelinha, mas de
necessidade para o êxito das tarefas, normalmente conquistada através de muito
esforço e perseverança de seus componentes. E isto deve ser respeitado.
Notas do autor:
As transcrições utilizadas na presente matéria foram feitas de edições do
Instituto de Difusão Espírita, de Araras-SP, com tradução de Salvador Gentille;
Nota do autor: A indicação das fontes de pesquisa, que resultaram em
transcrições parciais, foram feitas por Américo Sucena de Almeida, com
elaboração textual deste autor, sendo o título da matéria de criação conjunta.
Matéria originariamente publicada na RIE – Revista Internacional de Espiritismo, edição de fevereiro de 2005.
Orson Carrara