O Espelho dos Espíritas
A visibilidade marcou o século que está terminando. Este foi o século do
visual. O estudioso francês Regis Debray denomina a era de "videosfera", em contraposição `a logosfera da Idade Media e a grafosfera do Renascimento e do Iluminismo. A lógica da relação social e política é o "estar na mídia". A sociedade tornou-se "midiatizada".
Uma das características essenciais de uma psicologia dessa sociedade, sem
duvida, é o narcisismo. A vaidade deixa de ser simplesmente um problema moral, para se tornar uma pratica social. Algo, para acontecer, tem que sair na televisão.
É claro que nem tudo nos meios de comunicação é caracterizado pelo narcisismo.
Ao contrario do que diria Salomão, "nem tudo é vaidade". Tais ecossistemas
técnicos são lugares de comunicação, abrindo possibilidades de conhecimento do
homem a respeito de si mesmo, do mundo, do universo que o rodeia.
São, também aberturas para a possibilidade de entendimento das pessoas e grupos
sociais entre si.
Há algumas "marcas" que caracterizam o narcisismo na comunicação e, para termos
uma idéia pratica a respeito, abordaremos o assunto do ponto de vista das
atividades espíritas chamadas de "divulgação doutrinaria".
1. Visão Instrumental da Comunicação
Uma visão instrumental da comunicação é a que vê a mídia como instrumento ou
ferramenta da divulgação do Espiritismo. As relações sociais propiciadas pela
existência das instituições de comunicação dentro da sociedade passam a ser
buscadas para serem usadas ao máximo. Constituem uma espécie de maquinas, cujo
papel é funcionarem para "levar a mensagem". Tal modo de ver é narcísico porque
dispensa a idéia de simetria nas relações humanas, já que prioriza a postura do
emissor, no processo comunicativo.
2. Comunicação como território a ser conquistado
É uma conseqüência da visão instrumental, mas dentro de outra metáfora: a do
território. Expressões como "ocupar o espaço da mídia" ou "conquistar um horário
na programação" são típicos dessa visão.
De novo uma visão narcísica, pois se concentra na procura por colocar-se
vantajosamente no presumido jogo de poder dos loteamentos de programações
radiofônicas e televisivas. Ocupar espaço para influenciar os outros é também
uma típica instrumentalização, com a diferença de que, se antes a razão era
técnica, aqui a racionalidade é estratégica, vinculada `a busca por poder e
influencia.
3. Abordagem tecnicista
Seja instrumental, seja estratégica, a abordagem narcísica da comunicação
costuma se caracterizar pelo tecnicismo. Parte-se do principio de que, se
dominarmos as técnicas da comunicação (desde o saber usar certos aparelhos até o
saber adotar certas táticas no uso da voz, da imagem, do texto), dominaremos o
pensamento de quem estiver ligado a esses meios. Isso não é apenas narcísico,
pelos motivos já enumerados, como é falso. Não é a tecnologia adotada que
garante a comunicação, embora ela seja fundamental para o conceito de
informação.
4. Preocupação centrada na mensagem
Aqui, propomos uma clara diferença entre os conceitos de informar e comunicar,
que, no Espiritismo, poderíamos chamar de "fazer divulgação" e "fazer
comunicação". Informar é tornar tecnicamente disponível uma informação;
comunicar é relacionar-se com outras pessoas. A primeira, toma por base a
assimetria (há os que sabem e os que não sabem) e busca igualar os conhecimentos
e comportamentos a partir do prisma do emissor (que é, presumidamente, aquele
que sabe). A segunda, parte da simetria (todos sabem algo) e trabalha no sentido
de desenvolver relações a partir das quais as diferenças se tornem frutíferas
(cada um saírá da relação sabendo algo mais). O movimento informativo prioriza a
estrutura e busca adaptar as pessoas a ela. O processo comunicativo prioriza as
pessoas e coloca as estruturas a seu serviço.
No campo das atividades espíritas, a noção de divulgação é informativa, porque
está centrada na mensagem (a "Doutrina", que muitos julgam já conhecê-la pura e
pronta, devendo, inclusive, ser preservada, ainda que a custo de sacrifício de
pessoas) e nos processos técnicos inutilmente destinados a torná-la hegemônica
na sociedade. E a noção de comunicação social espírita é comunicativa
(desculpe-nos a tautologia), porquanto não se interessa em primeira instancia
pela "Divulgação da Doutrina", e sim pelo desenvolvimento de relações concretas
de fraternidade entre as pessoas.
No primeiro modo, a mensagem é o fim e as pessoas são meios.
No segundo, o Espiritismo é um meio ou, na melhor das hipóteses, um
direcionamento ético, e as pessoas são o fim. Nos processos comunicativos, se há
algo a ser sacrificado, com certeza não são as pessoas envolvidas.
5. Incapacidade de ouvir, de dialogar, de considerar a opinião dos outros, de
duvidar de si próprio. Narcisismo, enfim.
Tratada dessa forma, a idéia - que é praticamente generalizada - de divulgação
do Espiritismo, torna-se puro narcisismo doutrinário.
Nossa experiência, acompanhando um programa espírita de televisão em Goiás e os
comentários de companheiros espíritas a esse trabalho, tem comprovado isso de
forma dramática. é possível afirmar que a idéia da divulgação espírita traz
embutida uma intencionalidade provavelmente inconsciente, que precisa ser
questionada pelos espiritistas sérios: o que queremos com a comunicação,
falarmos com as pessoas ou nos enxergarmos nesses meios ?
Conversar com os diferentes públicos conectados por essa gigantesca rede social
ou simplesmente vermos as nossas idéias, resguardadas em toda a sua "pureza",
estampadas no vídeo ? Em síntese, estamos `a procura do próximo ou de nos
mesmos, na mídia ?
Uma abordagem comunicacional está centrada no outro, e na ética de nossa relação
com ele, e não em movimentos de conversão religiosa. O outro só se torna
"próximo", dentro da ética espírita-cristã, quando nos igualamos a ele,
dispensando qualquer pretensão de instrumentalizá-lo ou dominá-lo. As
instituições de comunicação da contemporaneidade são importantes pelas
possibilidades que são capazes de gerar, para o estendimento da fraternidade
possível entre nos, e não pela eventual ou suposta capacidade de enfiar idéias
prontas na cabeça dos outros.
Nesse sentido, pode ser significativo que tais veículos caminhem para uma
interatividade cada vez maior. A razão do futuro é, sem duvida, a razão do
dialogo, e não a do monologo. é a razão do altruísmo, e não do egoísmo. é a
razão do amor, e não a do narcisismo.
A televisão não existe para ser o espelho dos espíritas, ante a sociedade, nem
os espíritas devem buscá-la com essa pretensão tola. Caso, de fato, nos
interessemos pelos irmãos em sociedade, como costumamos afirmar, então busquemos
falar com eles dos temas que lhes interessam, em clima de dialogo e entendimento
mutuo, a fim de estendermos a eles os benefícios que pudermos e, porque não,
colhermos deles as visões e praticas diferentes que tenham e possam nos
enriquecer. Agindo assim, mesmo que não convertamos ninguém para o Espiritismo,
estaremos praticando-o, ao fundar uma nova sociedade, a partir da instauração de
um novo tipo de relação social.
Jornalismo Espírita e Diálogo Social
No jornalismo espírita brasileiro, também encontramos essa característica
narcisista: é um jornalismo opinativo, centrado na confirmação de idéias
instituídas e na critica da diferença.
O aspecto opinativo aparece no formato artigo, hegemônico na imprensa espírita.
Um estilo que não é tão problemático, por se referir a um movimento de índole
filosófica, cuja natureza discursiva se distingue pelo debate das idéias. Os
periódicos científicos tem, também, essa característica. Apesar disso, uma das
mais importantes facetas do Espiritismo brasileiro é o seu estendimento
religioso em direção ao mundo e, em especial, `as necessidades humanas.
Por isso, pensamos que outros formatos, como a reportagem (não apenas as
temáticas, mas também as que trabalhem sobre relatos de vida e de experiências),
podem enriquecer enormemente a comunicação dos espíritas com a sociedade. Em
síntese, o jornalismo espírita não tem porque ser exclusiva ou prioritariamente
opinativo e pregacionista.
No que diz respeito aos conteúdos, é visível a natureza confirmatória dos
artigos espíritas, reveladora, como na televisão, de uma face narcísica, oriunda
de uma apreensão hipodérmica, monologal, iluminista e instrumental da
comunicação. Vista desse modo, o gesto comunicativo ofertado por esse tipo de
jornalismo, longe de ser uma proposta de relação humana vinculada `a busca da
fraternidade, passa a ser a metáfora de uma guerra espiritual ou da conquista do
poder ideológico, reiterando os equívocos de religiões e partidos em todos os
períodos da historia, especialmente o da modernidade ocidental. Um jornalismo
fundamentado em tais pressupostos acaba instituindo a circulariedade dos
conteúdos, desdobrada na mera afirmação do confirmado e na critica dogmática da
diferença.
A nossa proposta, evidentemente diversa dessa pratica que descrevemos e
analisamos, é a da busca da comunicação como instauração e permanência de um
dialogo social. Dai, porque o formato "reportagem" pode ser uma saída
interessante, dentro da qual inclusive pessoas não-espíritas possam ser ouvidas
e historias de vida possam ser publicadas. A centralidade da comunicação, nesses
casos, deixaria de ser exclusivamente na mensagem, passando a buscar processos
comunicativos e a considerar os seres humanos envolvidos como mais importantes
do que as doutrinas e as instituições.
O dialogo social, nesse caso, desenvolver-se-ia a partir da fundação de esferas
publicas de compartilhamento das diferenças e de real fraternidade entre os
diferentes agentes interessados na temática dessa esfera publica, não importa a
opinião que adotem. Isso porque a tarefa fundamental do Espiritismo não é
simplesmente a de divulgar os seus princípios, mas, sobretudo, a de criar as
condições de possibilidade da sociedade fraterna e justa no mundo. E
fraternidade apenas se faz a partir da aceitação da diferença e na pratica
comunicativa do amor verdadeiro.
(Publicado no Boletim GEAE Número 278 de 3 de Fevereiro de 1998)
Luiz Signates