Morrer para Descansar
Desenvolvera-se Sérgio Mafra nos conhecimentos do Espiritismo cristão,
tornara-se elemento de valor entre os companheiros, colaborava atencioso, sempre que chamado a serviço, mas apresentava um defeito grave: era demasiadamente triste e pessimista e vivia em desacordo com todos os processos da experiência humana. Estimava a tarefa que lhe fora cometida, não se negava ao concurso fraterno; contudo, desejava morrer, abandonar o mundo para sempre e entregar-se ao descanso em convivência com as entidades amorosas do plano invisível.
Ricardo, amigo de muito tempo, assistia-o do campo espiritual, desveladamente.
Sérgio observava-lhe a fisionomia iluminada, através da visão mediúnica e
recordava, imediatamente, a idéia de morte.
- Ah! Meu amigo – exclamava choroso, dirigindo-se ao benfeitor -, quanto
desejava partir, cooperar convosco na vida mais alta! A Terra asfixia o
coração... em tudo a dor, o desalento, a incompreensão!...
Ricardo sorria e, tomando-lhe o braço, escrevia atencioso:
- Sérgio, meu caro, extingue os pensamentos da morte, porque somente a vida
persiste na eternidade. Não desprezes o ensejo de servir no mundo. Todos temos
para com o Planeta imensos débitos que devemos resgatar, de espírito confortado
e feliz. Ninguém renasce com isenção de sérios compromissos. Teus propósitos são
valiosos, és sincero nos sentimentos e confias em nós; todavia, a idéia fixa,
referente à morte do corpo, é uma obsessão perigosa que te poderá arrastar a
desenganos cruéis. Atende à vida, filho meu! Não te percas em lastimar o
desenvolvimento das criaturas; repara, acima de tudo, a zona de serviço que elas
te oferecem e dá-te ao trabalho com amor. Permaneces em aprendizado ativo. Não
fujas à lição. A tristeza dos criminosos é justificável por nascer de remorsos
amargos, proporcionando-lhes oportunidade a retificações; entretanto, constitui
uma excrescência deplorável nos servidores da fé. Semelhante angustia é um
conjunto de vibrações destruidoras, ao passo que a alegria sã vem de Deus e deve
comunicar-se aos seus filhos. A Criação inteira está palpitante de júbilo. Não
te entregues, portanto, ao desequilíbrio. Lembra-te de que permaneces no lugar
de serviço a que o Senhor te destinou. Reflete nesta profunda realidade e
continua servindo à causa do bem.
Sérgio lia e relia as considerações desse teor e redargüia em lagrimas:
- A existência humana, todavia, me assusta. Pensar na morte é a minha
consolação. Nada me interessa na terra, onde o tempo demora terrivelmente a
passar. Desejaria servir junto de vós, amado amigo, a fim de descansar o coração
e alcançar a paz.
Ricardo esboçava expressivo gesto e respondia com firmeza:
- Acreditarias, porventura, que possamos viver aqui sem atividades laboriosas?
Nossos trabalhos são enormes e nossas responsabilidades absorventes. O esforço
que nos compete irmãos encarnados; entretanto, Sérgio, os nossos deveres são bem
pesados e dolorosos por vezes. Não vivemos em paisagem aérea, exonerados de
obrigações difíceis, Somos compelidos a testemunhos que te assombrariam, por
certo, e não seria aconselhável o teu regresso à esfera invisível, sem uma
preparação adequada. Zela os teus interesses eternos, não te precipites,
aproveita o tempo, construindo com a verdade e o bem. Se precisarmos
efetivamente do fruto, não será razoável destruir a flor. A existência carnal te
oferece belos períodos de repouso e observação. Vale-te dos tesouros de agora
não de descuides.
- Observação? Repouso? – clamava Sérgio, desalento – não tenho oportunidades
para estudos eficientes e muito menos para descanso. A permanência na Terra é
castigo severíssimo, amargo degredo espiritual. Não me conformo com a paisagem
escura do mundo.
E o companheiro, embora em esforço normal, sem qualquer ato indigno da fé que
abraça, ardoroso, continuava chorando e lastimando o presente, através de
queixas veladas e amarguras indefiníveis.
Era, sem duvida, assíduo cooperador dos trabalhos espirituais e não se furtava
ao testemunho serio, mas continuava sempre viva aquela luta de argumentação
entre ele e Ricardo. Este erguia-lhe a mente para as elevadas concepções da vida
eterna; no entanto, aquela somente idealizava a morte repousante. E, no curso do
tempo, face à lei que determina a realização, conforme o ideal, Sérgio Mafra
desencarnou de uma gripe sem importância. O ardente desejo de morrer, para
descansar, impediu-lhe o controle eficiente da máquina orgânica; e, quando todos
os amigos lhe aguardavam, esperançosos, o restabelecimento físico, eis que Mafra
lhes impôs a incompreensível surpresa.
Esperou-o Ricardo, pacientemente, abraçou-o, no limiar da vida nova e falou como
quem não encontrava outro remédio senão a conformação:
- Boa sorte, meu amigo! Planejaste a morte e abandonaste o corpo!...
- Sim, sim – replicou Sérgio, de olhos brilhantes -, sempre desejei colaborar ao
vosso lado.
- Então sigamos ao serviço, não temos tempo a perder – acrescentou o benfeitor
amável e bem-humorado.
E aplicando-lhe forças magnéticas, para que Mafra não se deixasse dominar por
sensações de sono, fez-se acompanhar por ele, deliberadamente, ao seu campo de
serviços complexos.
Estava Sérgio encantado a principio, mas, aos poucos, reconheceu que Ricardo
dispunha de raríssimas horas para repouso, durante o dia. Não conseguiam nem
mesmo ensejo os mais longos entendimentos. O nobre amigo estava cheio de
ocupações sacrificiais e o recém-desencarnado viu-se na obrigação de
acompanhá-lo em peregrinação através de hospitais, creches orfanatos,
necrotérios, oficinas, templos e instituições de caridade, em serviço ativo de
socorro a doente e a menos favorecidos da sorte, encarnados e desencarnados.
Compelido a seguir-lhe o ritmo de serviço, Sérgio estava exausto, ao fim de duas
semanas.
Humilhado, vencido, dirigiu-se, em pranto, ao benfeitor, penitenciando-se:
- Ah! Meu nobre Ricardo, quantas exigências no trabalho espiritual! A
experiência é para mim muito dolorosa! Tente paciência, não suporto mais!...
Ricardo, porém, não sorriu, e considerou em tom grave:
- Não desejavas, em caráter prematuro, as tarefas reservadas ao homem, depois da
morte física? Não aproveitaste uma gripe benigna para facilitar o desequilíbrio
orgânico? Na terra maternal, erguias-te pela manhã, tomava o teu café
reconfortador, trabalhavas algumas horas no curso do dia, entregavas-te ao gosto
das refeições bem-feitas, distraias o coração na palestra afetuosa dos
familiares queridos, recebias a cooperação de desvelados benfeitores encarnados
e desencarnados e dormias na calma do sono e nos deslumbramentos do sonho...
Todavia, não obstante a sinceridade de tua fé considerava a existência um
martírio execrável. Traduzias a benção do Eterno por incomodo ao coração.
Presentemente, porem, observa que os teus serviços terrenos eram bem suaves e
constituíam verdadeiro paraíso em comparação com os deveres de hoje.
Mafra contemplava-o de olhar ansioso, aguardando a dispensa de obrigações que
lhe pareciam tão duro. Ma, muito longe de programar o repouso, Ricardo fixou,
nele os olhos lúcidos e concluiu:
- Agora, Sérgio, não te posso desobrigar, porque meus avisos à tua alma foram
reiterados e veementes; e, não podendo olvidar meus deveres, também não te posso
abandonar ao léu, no caminho de sombras. É, portanto, de teu interesse que
venhas comigo ao trabalho áspero, para que não te suceda alguma coisa pior.
Irmão X