O Culto aos Mortos numa Visão Kardequiana
O Homem só começa a ser Homem, quando começa a enterrar seus mortos, diz-nos o historiador Aníbal de Almeida Fernandes, em "A Genealogia como fator básico na formação da Civilização", e conclui: É o marco divisório entre o animal e o primeiro homem, e ocorreu há cerca de 40.000 anos com o Homo Sapiens e o Homo Neanderthal, antes mesmo da agricultura, e é o início da história humana. O sentimento de cultuar os mortos foi moldado, pois, a partir de época bem remota e está sedimentado em quase todas as tendências religiosas. As comunidades primitivas, peninsulares, agropastoris, inclinadas ao culto agrícola e ao culto da fertilidade, acreditavam, originariamente, que, em sepultando seus mortos nas
proximidades dos campos agrícolas, os espíritos desses cadáveres ressurgiriam à vida com mais vigor, quais sementes plantadas em solo fértil, mas criam que isso se daria como algo secreto e misterioso. Com essa crença, reverenciavam-se os
mortos próximos às tumbas, com festas e, sobretudo, com muita alegria, prática
que se estendeu viva em algumas culturas contemporâneas.
Os costumes dos povos primitivos foram se modificando devido à influência de
outros, vindos, provavelmente, do norte da África (os Iberos) e do centro da
Europa (os Celtas).
Veja-se o que nos revela um dos expoentes da Doutrina Espírita: "É dos gauleses
que vem a comemoração dos mortos, (...) só que, em vez de comemorar nos
cemitérios, entre túmulos, era no lar que eles celebravam a lembrança dos amigos
afastados, mas não perdidos, que eles evocavam a memória dos espíritos amados
que algumas vezes de manifestavam por meio das druidisas e dos bardos
inspirados". (1)
Ressalte-se, aqui, que os gauleses evocavam os ancestrais mortos (divindades)
nos recintos de pedra bruta. As druidisas (sacerdotisas) e os bardos (poetas e
oradores inspirados) eram verdadeiros "médiuns" e somente eles tinham
consentimento para consultarem os oráculos (na Antigüidade, resposta de uma
divindade a quem a consultava).
Os gauleses, portanto, não veneravam os restos cadavéricos, mas a alma
sobrevivente, e era na intimidade de cada habitação que celebravam a lembrança
de seus mortos, longe das catacumbas, diferentemente dos povos primitivos. A
Festa dos Espíritos era de suma importância para eles, pois homenageavam
Samhain, "O Senhor da Morte", festividade, essa, iniciada sempre na noite
anterior a 1º de novembro, ou seja, no dia 31 de outubro. Essa celebração
marcava o fim do verão e o fim da última colheita do ano. Acreditavam que os
espíritos dos mortos, nos meses de inverno, sairiam dos túmulos gelados para
visitarem suas antigas moradias aquecidas e orientar seus familiares. Os bons,
supostamente, os protegeriam, mas, para confundirem os maus espíritos,
vestiam-se de fantasias, o que deu origem à tradicional festa de Halloween dos
nossos dias.
Porém, uma densa bruma desceu sobre a terra das Gálias, através do tacão de
Roma, que expulsou os druidas e impôs o Cristianismo clérico. Esse período
histórico de frenética agitação, mais tarde foi mutilado pelos bárbaros,
sobrevindo uma madrugada de dez séculos (a obscura Idade Média), que proscreveu
o espiritualismo e entronizou a superstição, o sobrenatural, o milagre, a
beatificação, a santificação e a definitiva narcotização da consciência humana,
levando-a ao analfabetismo espiritual.
A história oficial da Igreja registra que foi no Mosteiro beneditino de Cluny,
no sul da França, no ano de 998, que o Abade Odilon promovia a celebração do dia
2 de novembro, em memória dos mortos, dentro de uma perspectiva catolicista.
Pela influência que esse Mosteiro, então, exercia na Europa setentrional,
propagou-se com rapidez a nova celebração, até porque veio de encontro aos
costumes já arraigados em todas as culturas, cada qual com seu entendimento e
sua prática, obviamente, quanto a cultuar os mortos. Somente em 1311 foi
sancionada, em Roma, oficialmente, a memória dos falecidos, mas foi Bento XV
quem universalizou tal celebração, em l915, dentre os católicos, cuja expansão
da religião auxiliou, ainda mais, a difusão desse costume.
A legislação vigente chega a declarar o dia 2 de novembro como feriado nacional,
com o objetivo de as pessoas poderem homenagear seus parentes e amigos
falecidos. Nós, os espíritas, somos questionados sobre o tema: como o
Espiritismo analisa o dia dos mortos? Respondemos a essa questão, da seguinte
maneira: as religiões falham, excessivamente, no que tange aos ensinos das
essenciais noções sobre a imortalidade da alma, muito embora haja uma ou outra
que já tenha alguma noção do que seja. Mesmo assim, ainda insigne, se comparada
aos ensinamentos de luz, ditados a Allan Kardec, e contidos em "O Livro dos
Espíritos". Daí a razão pela qual, no dia dos finados, as pessoas se dirigem aos
"campos santos", como se o cemitério fosse a morada eterna daqueles que
desencarnam. "O Livro dos Espíritos" nos ensina o respeito aos desencarnados
como um impositivo de fraternidade, sem que materializemos esse sentimento
frente aos túmulos, nem que tais lembranças ou homenagens sejam realizadas em um
dia especial, oficialmente estabelecido.
Nos dias de hoje, essa celebração se desviou, e muito, do ritual religioso,
transportando-se do foco sentimental e emocional para o comercial, uma vez que a
mercantilização de flores, velas, santinhos, escapulários, e a eventual
preocupação para a conservação dos túmulos (normalmente, só são lembrados em
novembro) respondem por esse protocolo social. O zelo com que são cuidados os
túmulos só tem algum sentido para os encarnados, que, aliás, devem se precaver
para não criarem um estranho tipo de culto. Não devemos converter as necrópoles
vazias em "salas de visita do além", como diz Richard Simonetti, (2) até porque,
há locais mais indicados para nos lembrarmos daqueles que desencarnaram.
Ainda que não reprovemos, de maneira absoluta, as pompas fúnebres, pois a
homenagem à memória de um homem de bem, "são justas e de bom exemplo"(3), o
Espiritismo revela que o desejo de perpetuar a própria memória nos monumentos
fúnebres vem do derradeiro ato de orgulho . "A suntuosidade dos monumentos
fúnebres determinada por parentes que desejam honrar a memória do falecido, e
não por este, ainda faz parte do orgulho dos parentes, que querem honrar-se a si
mesmos. Nem sempre é pelo morto que se fazem todas essas demonstrações, mas por
amor-próprio, por consideração ao mundo e para exibição de riqueza ."(4) A tumba
é o lugar-comum de encontro de todos os homens e nela se findam, impiedosamente,
todas as distinções sociais. Em face disso, é inútil o rico tentar perpetuar a
sua memória por meio de faustosos monumentos. Os anos os destruirão, assim como
o seu próprio corpo. Essa é a Lei da natureza. A recordação das boas e más ações
será menos perecível que o seu túmulo. A pompa dos funerais não o deixará limpo
de suas torpezas e não o fará ascender sequer um degrau na hierarquia
espiritual.(5)
Procuramos, mais, o lado cômodo, arraigando-nos ao formalismo material e
desprezamos a essencialidade do ser, motivo pelo qual obrigou Jesus a se
expressar aos escribas e fariseus da sua época: " sois semelhantes aos sepulcros
caiados, que por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos de
cadáveres e de toda espécie de podridão".(6)
Da questão 320 à 329 do Livro matriz, que deu origem ao Espiritismo, recebemos
lições de extrema importância sobre funerais e celebração em memória dos
"mortos", vejamos: os Benfeitores afirmam que os chamados "mortos" são sensíveis
à saudade dos que os amavam na Terra e que, de alguma forma, " a sua lembrança
aumenta-lhes a felicidade, se são felizes, e se são infelizes, serve-lhes de
alívio."(7) Porém, em se referindo ao dia dos "finados", atestam que é um dia
como outro qualquer, até porque os espíritos são sensíveis aos nossos
pensamentos, não às solenidades humanas. No dia dos finados eles só " reúnem-se
em maior número, porque maior é o número de pessoas que os chamam. Mas cada um
só comparece em atenção aos seus amigos, e não pela multidão dos
indiferentes."(8)
Não podemos desconhecer que o pensamento é uma força e que é o atributo
característico do ser espiritual; "é ele que distingue o espírito da matéria;
sem o pensamento o espírito não seria espírito. (...)se tem a força de agir
sobre os órgãos materiais, quanto maior não deve ser sobre os elementos
fluídicos que nos rodeiam! O pensamento age sobre os fluídos ambientes, como o
som sobre o ar; esses fluidos nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som.
Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si e, ao mesmo
tempo, assistem os Espíritos e são por estes assistidos ".(9)
A tradicional visita ao túmulo, em massa, não significa que venha trazer
satisfação ao "morto", até porque uma prece feita em sua intenção vale mais. É
bem verdade que a " visita ao túmulo é uma maneira de manifestar que se pensa no
Espírito ausente: é a exteriorização desse fato (...) mas é a prece que
santifica o ato de lembrar; pouco importa o lugar se a lembrança é ditada pelo
coração. "(10) Conhecemos pessoas (aliás muitas delas) que solicitam, antes
mesmo de morrerem, que sejam enterradas em tal ou qual cemitério. Essa atitude,
sem sombra de dúvida, demonstra inferioridade moral. "O que representa um pedaço
de terra, mais do que outro, para o Espírito elevado?"(11)
Quanto às honras que tributam aos despojos mortais de parentes e amigos, o
Espiritismo esclarece que no momento em que o Espírito chega a um certo grau de
perfeição não tem mais a vaidade da sociedade humana e compreende a futilidade
de tais solenidades, Contudo, faz uma ressalva sobre alguns, pois há "Espíritos
que, no primeiro momento da morte, gozam de grande satisfação com as honras que
lhes tributam, ou se desgostam com o abandono a que lançam o seu envoltório,
pois conservam ainda alguns preconceitos deste mundo."(12)
O defunto assiste ao seu enterro? "Muito freqüentemente o assiste".(13)
Esclarecem os Benfeitores - "algumas vezes não percebe o que se passa, se ainda
estiver perturbado" (14) - complementam.
Muitas vezes o falecido presencia seus herdeiros em reuniões de partilhas,
engalfinhando-se quais chacais em disputa pela herança. "Nessa ocasião que [o
falecido] vê quanto valiam os protestos que lhe faziam. Todos os sentimentos se
tornam patentes, e a decepção que experimenta, vendo a rapacidade dos que
dividem o seu espólio."(15).
Reflitamos juntos: o dia 02 de novembro é consagrado aos falecidos libertos ou
aos mortos que ainda estão jungidos à vida material? Existem duas possibilidades
de mortos: os que se sentem totalmente livres do arcabouço carnal, porém "vivos"
para uma vida espiritual plena, e os que permanecem com a sensação de que,
ainda, estão encarnados, porém "mortos" para a vida física, pois somente
vivenciam, na espiritualidade, a vida animal. " Para o mundo, mortos são os que
despiram a carne; para Jesus, são os que vivem imersos na matéria, alheios à
vida primitiva que é a espiritual. É o que explica aquele célebre ensinamento
evangélico, em que a pessoa prontificou-se a seguir o Mestre, mas antes queria
enterrar seu pai que havia falecido, e Jesus conclamou" (16)- "Deixai aos mortos
o cuidado de enterrar seus mortos, tu, porém, vai anunciar o Reino de Deus".(17)
A visitação aos túmulos é um ato exterior, que evoca a lembrança dos entes
queridos desencarnados e é a maneira de as pessoas demonstrarem a saudade e o
carinho que sentem por eles, mas só terá o seu devido valor, se essa atitude for
realizada com subida intencionalidade. Não deve, portanto, representar um
compromisso social e nem ser eivada de manifestações de desespero, de cobranças,
de acusações, como sói ocorre em muitas ocasiões. Em verdade, se a visitação aos
túmulos não é condenável, ela é totalmente desnecessária, até porque o falecido
não se encontra no cemitério, podendo ser lembrado e homenageado através da
prece, a qualquer momento e em qualquer lugar. Portanto, nossos entes queridos
já falecidos podem ser lembrados na própria intimidade e aconchego do lar, ao
invés da frieza dos cemitérios e catacumbas.
É óbvio que "faz sentido rememorar com alegria e não lastimar os que já
partiram, e que estão plenamente vivos. Finados é uma mistura de alegria e dor,
de presença-ausência, de festa e saudade. Aos que ficamos por aqui, cabe-nos
refletir e celebrar a vida com amor e ternura, para depois, quiçá, não amargar
no remorso. Aos que partiram, nossa prece, nossa gratidão, nossa saudade, nosso
carinho, nosso amor!" ( 18)
Se formos capazes de orar, com serenidade e confiança, transformando a saudade
em esperança, sentiremos a presença dos parentes e amigos desencarnados entre
nós, envolvendo-nos o coração com alegria e paz. Por esta razão e muitas outras,
façamos do dia 2 de novembro um dia de reverência à vida, lembrando
carinhosamente os que nos antecederam de retorno à pátria espiritual, e também
os que conosco ainda jornadeiam pelos caminhos da existência terrena.
REFERÊNCIAS CONSULTADAS:
(1) Denis, Leon. O gênio céltico e o mundo invisível. Rio de Janeiro: Ed.CELD.
1995. p. 180
(2) Disponível em
http://comunidadeespirita.com.br/Imortalidade/quemtemmedo/estranho%20culto.htm
(3) Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2001, Perg.
824.)
(4) Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2001, Pergs. 823 e
823a.
(5) Idem (Ver item 320 e seguintes)
(6) (Mateus 23:27)
(7) Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2001, Perg 320
(8) Idem pergunta321-a
(9) Kardec, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1864 – "Da Comunhão do
pensamento"
(10) Idem pergunta323
(11) Idem pergunta325
(12) Idem pergunta326
(13) Idem pergunta327
(14) Idem pergunta328
(15) Artigo de João Demétrio intitulado: Finados a Luz do Espiritismo,
disponível no site < (16)
http://www.feal.com.br/colunistas.php?art_id=6&col_id=9> acessado em 26/10/07
(17) (Lucas 9, 51-62)
(18) Editorial do Jornal Mundo Espírita – novembro.2006
Jorge Hessen