Cobiça
Ataliba Gouveia, aos trinta e dois janeiros, fizera-se ativo homem de
negócios, especializando-se no comércio de drogaria.
Contratava farmacêuticos zelosos e seguros, cercava-se de cooperadores amigos e acabava de comprar um estabelecimento em movimentada esquina de cidade grande.
Estimava agora varar as tardes, na farmácia nova, ouvindo companheiros ou seguindo os movimentos apressados do povo.
- Muito bem, Ataliba, você fez uma aquisição excelente.
A nova vinha de Neca Fragoso, amigo de muito tempo que o visitava.
Depois do abraço cordial, veio o diálogo aberto.
- É isso - confirmou o proprietário - as condições favoreciam e não vacilei.
- Ótimo ponto! - observou o interlocutor.
- Embora a intromissão de pedestres, a situação do estabelecimento me satisfaz.
- Dizem que essa esquina é perigosa - acentuou Fragoso com seriedade - muitos
desastres por aqui, mormente com motoristas afoitos.
- Sabemos, mas o sinaleiro está perto.
E Ataliba continuou:
- Já estamos aqui, há dois meses e, diante de carros batidos, com pessoas
nervosas, exibindo escoriações, instalei um ambulatório para serviços de
emergência. Aliás, temos dois médicos amigos no prédio ao lado...
- Muito bem -tornou o amigo - a sua idéia foi bem inspirada. Um ambulatório é um
recanto providencial para socorro e caridade.
Ataliba fez um sorriso irônico e ajuntou:
- Caridade? Isso é que não. Aqui, qualquer serviço é no dinheiro vivo.
Beneficência em esquina de luxo não dá pé. Tenho trabalhado sem descanso e, além
disso estou casado,tenho um filho, a conta cinco anos. E ele não conhecerá as
dificuldades que atravessei na meninice. Trabalho à maneira do burro, sob
cangalha pesada, mas ao pensar que meu filho crescerá rico e feliz, consolo-me
das canseiras. Não temos atividade gratuita. E se qualquer pessoa surgir aqui em
necessidade, sem dinheiro, que vá bater noutra freguesia.
A noite descerra apresada.
Fazia frio.
O relógio marcava dez minutos para as sete.
A conversação entre os dois prosseguiu, quando uma senhora chegou espavorida,
carregando uma criança nos braços.
- Senhor, - dirigiu-se a Ataliba, por indicação de um balconista - esta criança
desgarrou-se da ama e correu pela rua afora... Vi quando foi atropelado por um
carro que seguia em alta velocidade...Corri ao encontro do menino que gemia no
chão. Enrolei-o em minha blusa, mas a cabecinha sangra muito e o corpo todo deve
ter sérias contusões... Venho pedir socorro... Soube que o Senhor tem aqui um
ambulatório...
- A senhora tem dinheiro suficiente para as despesas? - perguntou o proprietário
com indiferença.
- Ah! Isso não...Sou arrumadeira e estava a caminho do ônibus para o meu bairro.
- Então passe bem, minha senhora. Não temos aqui serviços gratuitos.
- Senhor, tenha piedade! Creio que esta criança está quase morta...Estou agindo
pelo coração...Em nome de Deus, rogo socorro...Não posso abandonar este menino
infeliz...Eu também sou mãe de dois filhos pequenos que me esperam em casa...
E para melhorar a respiração do menino que lhe fizera imóvel nos braços,
retirou-lhe do rosto o lenço ensangüentado com que tentava estancar-lhe o sangue
da boca.
Ao contemplar a face triste da criança, agora morta, Ataliba Gouveia
transfigurou-se.
Abraçado a Fragoso que acompanhava o realismo daquele quadro de dor, caiu em
pranto a clamara para o companheiro:
- Fragoso!...Fragoso!...O que será de mim?!...Este é o meu filho...
Augusto Cezar