Incêndio na Serraria
I
O grupo de senhoras estava em prece.
Chamados a ouvi-las, nós, os desencarnados, tínhamos o coração enternecido.
Desejavam construir uma escola. E mentalizavam no doce requerimento o modesto
edifício, limpo e alvo, que ofertariam aos pequeninos.
- Senhor - dizia a mais experiente das quatro -, Senhor, inspirai-nos e
protegei-nos. Agradecemos as dádivas que já recebemos em Vosso nome. O pedaço de
terra, a pedra e a cal... Agora, Senhor, precisamos de madeira para dar
início... Confiadas em Vosso amor, visitaremos a fábrica de móveis... Rogaremos
auxílio, contando com Vossa bênção!
Em seguida, levantaram-se para sair. E, comovidos, junto delas, pusemo-nos
igualmente em marcha.
II
O gerente da serraria-oficina, importante empresa da grande cidade, recebeu a
comissão cortesmente.
Contudo, o Dr. Alberto - era ele engenheiro hábil -, ao ouvir a sucinta
exposição, esfriou, desapontado.
Mas, mesmo assim, a conversação se fez viva.
- Não temos interesse algum em concessão semelhante - disse.
- Doutor, mas é uma escola destinada às crianças menos felizes - falou D. Rute,
a maior responsável.
- As portas serão abertas em nome de Deus - falou D. Constância.
- Contamos com o senhor - acentuou Dona Ester.
- Deus recompensará o que possa fazer - aduziu D. Amália.
- E que temos a ver com Deus? - falou ele, mordaz. - A educação é obra para
governos. Não será lícito imiscuir o Criador em negócios que não lhe dizem
respeito. Digo isso em consideração às senhoras, porque, de mim mesmo, sou
materialista confesso. Ateu. Ateu puro.
D. Rute sorriu, delicada, ma não se deu por vencida. E aclarou:
- Decerto que esperamos do governo que nos dirige providências mais amplas a
favor dos meninos. Entretanto, até que isso aconteça, não será compreensível
fazer algo de nossa parte? O ensino será totalmente alheio ao ensino religioso.
- Mas, por que envolver Deus nesta história? - resmungou o engenheiro,
positivamente sarcástico.
- Por que não? - ponderou D. Rute, paciente. - Respeitamos o seu ponto de vista,
o seu modo de pensar ... Mas cremos na força inteligente da vida. Admitimos a
eterna bondade que orienta os sucessos do mundo. Sabedoria e amor que chegam de
Deus. O senhor comanda uma fábrica. Conta dezenas de empregados. Dispõe de
muitas máquinas. Entretanto, doutor, acreditamos que toda a matéria-prima, como
sejam as árvores cortadas, os instrumentos em uso, o equilíbrio dos servidores e
até mesmo a sua própria saúde são doações de Deus, que a todos nos sustenta.
- Quem é o dono real de tudo, senão Deus? - falou D. Ester, com brandura e
espontaneidade.
O Dr. Alberto mostrou-se mais irônico. Referiu-se à Natureza. Exibiu mapas e
apontamentos sobre botânica. Comentou as vitórias da contabilidade, da técnica,
da fiscalização, da higiene...
Por mais de uma hora falou e falou sobre os novos progressos da Humanidade. E
acabou notificando que não daria peça alguma, nem mesmo um centavo.
As senhoras, apesar de sorridentes, levantaram-se acabrunhadas.
Tudo em vão.
Começaram as despedidas corretas, quando o inesperado aconteceu.
III
- Doutor Alberto! Doutor Alberto! - gritou um operário, varando a porta do
gabinete. - Depressa! Venha depressa! O fogo está devorando a seção de
compensados!
Alarido interior. Campainhas vibrando. Corre-corre. Brados por socorro
multiplicam-se angustiantes.
O engeheiro movimenta-se, espavorido.
As senhoras instintivamente lhe seguiram os passos. E nós também.
O incêndio nascera de violento curto-circuito.
Dr. Alberto, muito pálido, ordena e coopera. Há deficiência de pessoal. As
senhoras, porém, corajosamente, tomam a dianteira do trabalho salvacionista,
como se lhe fossem subalternas de muito tempo.
Empunham mangueiras. Deslocam móveis. Transferem tábuas pesadas. Combatem o
fogaréu. E pulam. E sofrem queimaduras ligeiras. Estafam-se. E vencem. Finda
meia hora de intensa luta, as chamas se extinguem. Ainda assim, esclarece o
chefe de obras que duzentos mil cruzeiros de madeira compensada deviam estar
perdidos. A casa não estava segurada contra incêndio.
O Dr. Alberto, todavia, agora calmo, aproxima-se das damas, quatro heroína aos
seus olhos e, cumprimentando a diretora da comissão, disse, gentil:
- D. Rute, penso que Deus ganhou a questão de sua escola. Mudei de idéia. Mande
buscar amanhã toda a madeira de que necessite. E mais o que precisar.
E, bem-humorado, acrescentou:
- Depois conversaremos sobre Deus, como dono desta oficina...
As senhoras, chamuscadas, com as vestes sujas e rasgadas, sorriram e
retiraram-se.
Depois de dois meses, escola singela e branca recebia quarenta meninos. Doutor
Alberto, presente à inauguração, contou a história do incêndio, e um garoto, em
seguida, fez pequeno agradecimento, terminando com a bela exclamação:
- Que Deus nos abençoe!
Hilário Silva