A Mente que não Mente
A ortodoxia religiosa sempre andou preocupada com a eclosão de
doutrinas reformistas e renovadoras que classifica sumariamente de heréticas.
Essa vigilância tem levado a muita perseguição injusta e a não poucos
arrependimentos e recuos. Alguns heréticos chegaram mesmo a passar da condição
de réprobos à canonização, como Joana D' Arc, quando foi revisto o seu processo.
Outros, como Giodarno Bruno e Galileu, constituem até hoje pontos sensíveis na
história eclesiástica, como pecados da juventude que não relembramos sem
angústia.
O problema, porém, tornou-se muito mais sério nestes últimos tempos, nos quais o
arcabouço teológico começa a estalar ao peso insuportável da modernização do
pensamento. Ainda que a ciência também tenha seus dogmas e seus hereges, muito
do que ela vai revelando adquire foros de conquista irreversível, geralmente em
sacrifício de velhos conceitos superados.
Qualquer menino de ginásio sabe hoje que um corpo humano não pode subir ao céu
como querem os dogmas da ascensão do Cristo e de Maria.
Mesmo admitindo-se a atuação de uma força propulsora que os projetasse para além
da gravidade terrestre, os corpos assim deslocados, ficariam suspensos no espaço
a circular na órbita da terra ou de seu satélite.
Esse tipo de conhecimento leva o homem moderno às trilhas da descrença por não
saber como conciliar razão e fé. Os grandes filósofos do cristianismo ortodoxo
conseguiram, com enorme sucesso e por largo espaço de tempo, convencer fiéis de
que a fé era uma coisa e razão outra, e que aquela não poderia ser subordinada a
esta.
Ainda há quem admita esse conceito absurdo; outros, porém, preferem pensar por
sua própria cabeça e submeter à crítica da razão aquilo que lhes chega envolvido
pela atmosfera abafada da teologia escolástica. Estes derivam para descrença e
desanimam na busca da verdade ou partem para o estudo sistemático de qualquer
sistema que ofereça alguma luz ao entendimento do universo.
O Espiritismo é a doutrina que conseguiu, pela primeira vez, conciliar fé e
razão, não admitindo aquilo que não puder passar no teste do racionalismo
inteligente e esclarecido.
Por isso vai se impondo metodicamente, seguramente, ampliando cada vez mais sua
área de influência, pois atrai a todos aqueles que, sem poderem mais aceitar a
velha crença divorciada da razão, estão prontos para acatar uma verdade superior
que não exige o sacrifício do raciocínio. Mas ainda: o Espiritismo expõe uma
doutrina do mais profundo sentido humanista. A sua racionalidade não a levou à
frieza dos símbolos matemáticos ou dos meros conceitos filosóficos - é, antes,
uma norma de vida, um roteiro para compreensão do universo e posicionamento do
homem na escala cósmica.
Por isso, muitos nos procuram, o que preocupa, como é natural, os responsáveis
pela perpetuação do superado sistema dogmático. Através dos séculos, chegou a
ser desenvolvida uma verdadeira técnica de combate às novas idéias que ameaçam a
estabilidade da ortodoxia. Essa técnica se aperfeiçoa com o passar do tempo, mas
continua basicamente a mesma.
O Espiritismo é uma das doutrinas que muito vem incomodando a igreja
especialmente a brasileira, ou seja, a porção brasileira do catolicismo romano.
Para combatê-los, vários e ilustres sacerdotes têm sido investidos dos
necessários poderes e dos competentes "Imprimatur" e "Nihil Obstat". Essa é a
técnica básica.
Há algum tempo, entretanto, a dominante do plano de ataque era a velha doutrina
de interferência do diabo nas manifestações mediúnicas. Hoje isto seria
inadmissível, pois até mesmo os sacerdotes já descobriram que essa história de
demônio é fantasia pura. A prova está nas declarações de alguns eminentes
teólogos perante o Concílio Vaticano-II. Impedidos assim de invocar o demônio de
atacar a ciência nas suas conquistas mais legítimas, buscam qualquer princípio
científico que ofereça a mínima possibilidade de apoio. Esse é o ponto em que
variou a técnica.
Um dos recursos de que estão se socorrendo os nossos queridos irmãos sacerdotes
é a Parapsicologia, na qual vêm depositando grandes e infundadas esperanças.
A Parapsicologia ainda não está muito segura de si e sofre dum renitente mal de
origem, que poderíamos chamar, recorrendo ao velho grego, de pneumofobia, ou
seja, medo do espírito. A jovem ciência que nós espíritas, poderíamos
classificar como autêntica reencarnação da Metapsíquica, treme à idéia de acabar
descobrindo o espírito humano e foge da palavra como, segundo se dizia, o
desmoralizado diabo fugia da cruz. Os modernos tratados de Parapsicologia giram
todos em torno do mesmo "leit motiv": "O Alcance da Mente", "O Novo Mundo da
Mente", "Ciência Fronteiriça da Mente", "Canais Ocultos da Mente". É tudo mente
e nada de espírito. Sobrevivência?! Deus nos livre! Pois se nem quererem
concordar em que o espírito exista, como vão admitir que sobrevive? Nada disso;
tudo se explica pela faculdade extra-sensorial da mente. Mas que faculdade é
essa e que "Mente" é essa?
Vêm, então, os nossos inevitáveis sacerdotes parapsicológicos deitar sabedoria
extra-sensorial, contaminados irremediavelmente pela mesmíssima pneumofobia e
tudo para eles é Mente também.
Topamos, assim, como esta incongruência, difícil de se admitir em homens que
devem ter estudado a sua filosofia:
1 - a mente dispõe de faculdades extra-sensoriais (postulado cientifico que
aceitam e ensinam);
2 - o espírito (alma) que não pode existir sem a mente; sobrevive à morte física
(postulado teológico que também aceitam e pregam);
3 - a mente (ou espírito ou alma) não está sujeita a limitação de tempo ou de
espaço (também pacífico).
No entanto, qual a conclusão: A mente do espírito sobrevivente que ligada ao
corpo, tinha recursos tão notáveis, não pode manifestá-los quando se separa do
corpo pela morte física, a não ser através do "milagre"(!).
E os livros que contam essas coisas merecem ingênuos e inadvertidos "Imprimatur"
e "Nihil Obstat", o que vale dizer que são aprovados, confiantemente para o
leitor católico; autoridades Eclesiásticas respeitáveis dão cobertura do ponto
de vista teológico a obras que, do ângulo científico, estão oferecendo uma visão
deformada e incompleta da realidade. A Parapsicologia não tem substância
suficiente para oferecer base à teologia ortodoxa e jamais a terá, enquanto
permanecer contida nos seus gabinetes atuais.
No dia em que o mecanismo do espírito (chamem de mente se quiserem) for
pesquisado por cientistas corajosos e despidos de preconceitos, vão ser
"revelados" os seguintes pontos que o Espiritismo conhece há mais de cem anos:
1- que espírito existe, preexiste e sobrevive;
2- que há um intercâmbio ativo entre os homens que já viveram na Terra e os
espíritos dos que vivem como homens;
3- que o espírito se reencarna, evolui e é responsável pelo que faz aqui e no
mundo espiritual.
Diante disso, como é que vão ficar os nossos padres parapsicólogos? Quando
voltarem para o espaço, depois da chamada "crise da morte" e quiserem transmitir
a realidade da sobrevivência ao companheiro encarnado, este poderá dizer muito
simplesmente que não é preciso admitir a comunicação espírita; basta a
pantomnésia ou a hiperestesia direta, ou indireta. E o pobre espírito, dentro
duma realidade irrecusável, irá amargar alhures a repercussão de sua vaidade
teológica e científica.
Hermínio C.Miranda