Angústia Materna
O coração materno é uma taça de amor em que a vida se
manifesta no mundo.
Ser mãe é ser um poema de reconforto e carinho, proteção e beleza.
Entretanto, quão grave é o oficio da verdadeira maternidade!...
Levantam-se monumentos de progresso entre os homens e devemo-los, em grande
parte, às mães abnegadas e justas, mas erguem-se penitenciarias sombrias e
devemo-las, na mesma proporção, as mães indiferentes e criminosas.
É que, muitas vezes, transformamos o mel da ternura, destinado por Deus a
alimentação dos servidores da terra, em veneno do egoísmo que gera monstros.
Fala-vos pobre mulher desencarnada, suportando, nas esferas inferiores, o peso
de imensa angustia.
Resumirei meu caso para não inquietar-vos com a minha dor.
Moça ainda, desposei Claudino, um homem digno e operoso, que ganhava
honestamente o pão de dia em atividades comerciais.
Um filhinho era o maior ideal de nossos corações entrelaçados no mesmo sonho.
E, por essa razão, durante seis anos consecutivos orei fervorosamente suplicando
a Deus nos concedesse essa benção...
Uma criança que nos trouxesse a verdadeira alegria, que nos consolidasse o reino
de amor e felicidade...
Depois de seis anos, o filhinho querido vagia em nossos braços.
Chamamos-lhe Pedro, em homenagem ao segundo imperador do Brasil, cuja
personalidade nos merecia entranhado respeito.
Contudo, desde as primeiras horas em que me fizera mãe, inesperado exclusivismo
me tomou o espírito fraco.
Acalentei meu filho como se a alma de uma leoa me despertasse no seio.
Não obstante os protestos de meu marido, criei Pedro tão somente para a minha
admiração, para o meu encantamento e para o circulo estreito de nossa casa.
Muitas vezes perdia-me em cismas fantasiosas, arquitetando para ele um futuro
diferente, no qual mais rico e mais poderoso que os outros homens vivesse
consagrado à dominação.
Por esse motivo, mal ensaiando os primeiros passos, Pedro, estimulado por minha
leviandade e invigilância, procurava ser forte em mau sentido.
Garantido por mim, apedrejava a casa dos vizinhos, humilhava os companheiros e
entregava-se no templo domestico, aos caprichos que bem entendesse.
Debalde Claudino me advertia, atencioso.
Meus princípios, porém, eram diversos dos dele e eu queria meu filho, para
vaidosamente reinar.
Na escola primária, Pedro se fez pequenino demônio.
Desrespeitava, perturbava, destruía...
Ainda assim, vivia eu mesma questionando com os professores, para que lhe fossem
assegurados privilegio especiais.
A criança era transferida de estabelecimento a estabelecimento, porque
instrutores e serventes me temiam a agressividade sempre disposta a ferir
Em razão disso, na primeira mocidade, vi meu filho incapacitado para mais amplos
estudos.
A índole de Pedro não se compadecia com qualquer disciplina, porque eu, sua mãe,
lhe favorecera o despotismo, a vaidade e o orgulho gritantes.
Quando nosso rapaz completou dezesseis anos, o pai amoroso e correto
providenciou-lhe tarefa digna, mas, findo o terceiro dia de trabalho, Pedro
chegou em casa choramingando, a queixar-se do chefe, e eu, em minha imprudência,
lhe aceitei as lamentações e exigi que Claudino lhe dobrasse a mesada,
retirando-o do emprego em que , a meu ver, apenas encontraria pesares e
humilhações.
O esposo me fez ver a impropriedade de semelhante procedimento; no entanto,
amava-me demais para contrariar-me os caprichos e, a breve tempo, nosso filho
entregou-se a deploráveis dissipações.
Aquele para quem idealizara um futuro de rei, chegava ao lar em horas avançadas
da noite, cambaleando de embriaguez..
O olhar piedoso de Claudino para as minhas lágrimas dava-me a entender que as
minhas preocupações surgiam demasiado tarde.
Todos os meus cuidados foram então inúteis.
Gastador e viciado, Pedro confiou-se a bebida, à jogatina, comprometendo-se num
estelionato de graves proporções, em que o nome paterno se envolveu numa divida
muito superior as possibilidades de nossa casa.
Claudino, desditoso e envergonhado, adoeceu, sem que os médicos lhe
identificassem a enfermidade, falecendo após longos meses de martírio
silencioso.
Morto aquele que me fora companheiro devotadíssimo, vendi nossa residência para
solver grandes débitos.
Recolhi-me com Pedro num domicilio modesto; entretanto, embora me empregasse,
aos cinqüenta anos, para atender-lhe as necessidades, comecei a sofrer, das mãos
de meu filho ébrio, dilacerações e espancamentos.
Certa noite, não pude conter-lhe os criminosos impulsos e caí golfando sangue...
Internada num hospital de emergência, senti medo de partilhar o mesmo teto com o
homem que meu ventre gerara com desvelado carinho e que se me transformara em
desapiedado verdugo.
Fugi-lhe, assim, ao convívio.
Procurei velha companheira da mocidade, passando a morar com ela num bairro
pobre.
E, juntas, organizamos pequeno bazar de quinquilharias.
Pensava em meu filho, agora, entre a saudade e a oração, entregando-o a proteção
da Virgem Santíssima.
Finda a tarefa diária, recolhia-me à sos em singelo aposento, trazendo em minhas
mãos o retrato de Pedro e rogando ao anjo dos Desvalidos amparasse aquele cuja
posição moral eu apenas soubera agravar com desleixo delituoso.
Amealhei algum dinheiro...
Dez anos correram apressados sobre a minha nova situação.
E porque as nossas migalhas viviam entesouradas em meu quarto de velha indefesa,
cada noite me armava de um revolver sob o travesseiro, ao mesmo tempo que
desbotada fotografia era acariciada por minhas mãos.
Numa noite chuvosa e escura, observei que um homem me rondava o leito humilde.
Alteava-se a madrugada.
O desconhecido vasculhava gavetas procurando algo que lhe pudesse, naturalmente,
atender a viciação.
Não hesitei um momento.
Saquei da arma e buscava a mira correta para que o tiro fosse desfechado com
segurança, quando a luz de um relâmpago penetrou a vidraça...
Apavorada, reconheci, no semblante do homem que me invadia a casa, meu filho
Pedro, convertido em ladrão.
Esmoreceram-se-me os braços.
Quis gritar, mas não pude.
A comoção insofreável como que me estrangulava a garganta.
Contudo, através do mesmo clarão, Pedro me vira armada e bradou, sem
reconhecer-me de pronto:
- Não me mates, megera! Não me mates!
Avançou sobre mim como fera sobre a presa vencida e, despojando-me do revolver a
pender-me das mãos desfalecentes, sufocou-me com os dedos que eu tantas vezes
tinha acariciado, e que me asfixiavam, agora, como garras assassinas...
Não consegui, realmente, pronunciar uma só palavra.
No entanto, ligada ainda ao meu corpo, meus olhos e meus ouvidos funcionavam
eficientes.
Registrei-lhe o salto rápido sobre o acendedor de luz...
Naturalmente, ele agora contava simplesmente com um cadáver.
Contemplei-o com a ternura de mulher que ainda ama, apesar de sentir-se em
derrocada suprema, e notei que Pedro se inclinou, instintivamente, para minha
mão esquerda, crispada, a guardar-lhe a fotografia.
Horrorizado, exclamou:
- Mãe, minha mãe! Pois és tu?
Para falar com franqueza, daria tudo para volver ao equilíbrio orgânico,
acariciar-lhe de novo os cabelos e dizer-lhe: - "Filho querido, não se preocupe!
Regenere-se e sejamos felizes voltando a viver juntos! Estou velha e cansada...
Fique comigo! Fique comigo!..."
Entretanto, minha língua jazia inanimada e minhas mãos estavam hirtas.
Lagrimas ardentes borbotavam-me dos olhos parados, enquanto a voz querida me
gritava estridente:
- Mamãe! Mamãe! Minha mãe!...
Um sono profundo, pouco a pouco, se apoderou de mim e somente mais tarde acordei
numa casa de socorro espiritual, onde pude reconstituir minhas forças para
empreender a restauração de minha alma diante da Lei.
No entanto, até agora, busco meu filho para rogarmos juntos a benção da
reencarnação em que eu possa extirpar-lhe do sentimento a hera maldita do
orgulho e do egoísmo, da viciação e da crueldade.
E enquanto sofro as conseqüências de meus erros deliberados, posso clamar para
as minhas companheiras do mundo:
- Mães da Terra, educai vossos filhos!
Afagai-os no carinho e na retidão, na justiça e no bem.
Uma criança no berço é um diamante do Céu para ser burilado.
Lembrai-vos de que o próprio Deus, em conduzindo a terra o seu Filho Divino,
Nosso Senhor Jesus-Cristo, fê-lo nascer numa estrebaria, deu-lhe trabalho numa
oficina singela, induziu-o a viver em serviço dos semelhantes e permitiu que
Ele, o Justo, fosse imerecidamente imolado aos tormentos da cruz.
Sebastiana Pires