O Juiz Compassivo
O Homem rude, escravo da Natureza, através de laborioso atrito
no bosque cerrado, fez fogo crepitante, e a lenha, a consumir-se, lamentou com
amargura:
- Ai de mim! Quem me socorre? Quem me livrará do incêndio devastador?
Mal se calara o combustível, grande porção de ferro bruto foi trazida ao
braseiro e o minério chorou, clamando:
- Ó Céus! O calor me consome! Desventurado que sou! Quem me arrancará de
semelhante inferno?
Emudeceu o infeliz e, depois de alguns dias, o ferro, convertido em arado,
sulcava a terra, que gemia, dilacerada:
- Quem se atreve a rasgar-me o seio de mãe? Dou quanto tenho à vida... Por que
me despedaçam o coração? Piedade! Piedade!
O silêncio, todavia, tornou ao terreno. Decorridas algumas horas, o grão foi
lançado às chagas da terra e, vendo-se tragado pelo solo, exclamou:
- Quem me atenta, assim, contra a fraqueza? Deus de bondade! Não me entregueis à
sanha dos maus... Tenho medo, a escuridão me sufoca e o frio me impele à morte!
Entretanto, acabou submetido e, pouco tempo depois, ressurgiu na forma de
arbusto frágil que, dia a dia, cresceu, floriu e frutificou.
Quando a espiga madura se orgulhava ao sol, veio a segadeira que a decepou sem
comiseração. A espiga, triste reclamou, atormentada:
- Que será de mim? De onde procede o golpe que me abate?! Justiça! Justiça!
O debulhador, contudo, em momento rápidos, cortou-lhe a voz, e agora, em lugar
dela, apareciam bagas robustas e anchas de si.
A breve trecho, estas foram precipitadas na canoura do moinho e, quando enorme
pedra realizava o esmagamento, encheu-se o ar de brados comoventes:
- Socorro! Socorro! Salvem-nos! Salvem-nos! ...
O serviço da velha mó impôs, sem demora, estranha inquietude, e onde existiam
grãos preciosos apareceu lirial farinha, a qual, parecia, nada haveria de
perturbar.
Veio, porém, o amassador, que, misturando-o a ingredientes diversos, com ela
formou substanciosa massa.
A farinha chorava e lamentava-se dolorosamente e, ao ser conduzida ao forno,
gritou, súplice:
- Que crime cometi para sofrer, assim, tamanha flagelação?
Pouco a pouco, o fortíssimo calor a emudeceu; findas algumas horas, era ela
formoso pão na mesa do Homem.
O feliz comensal fez-se rodeado de várias presas, tais como a uva pisada no
lagar, em forma de vinho, uma costela sanguinolenta de ovelha choupada ao
amanhecer, ervilhas afogadas em molho excitante e alguns pequeninos cadáveres de
peixe enlatado, e comeu, comeu... Sem o menor pensamento de gratidão pelo
repasto que tantos sacrifícios custara à Natureza.
Repetia-se, diariamente, a mesma cena, quando o Céu, compadecido e preocupado,
enviou a Fé ao gastrônomo esquecido de si mesmo, e, com delicadeza, a virtude
divina o convidou a trabalhar na sementeira do bem. Não seria razoável dar
alguma coisa ao mundo que tudo lhe dava, auxiliando a Terra, de algum modo, no
amparo às criaturas inferiores?
O Homem, no entanto, desferiu gargalhada escarninha e, menosprezando-a,
refestelou-se em veludosa poltrona onde se pôs a roncar.
Reparou a Fé, sob forte assombro, que enquanto o ferro, o grão e o animal se
achavam despertos, atendendo à finalidade que lhes competia nos círculos da
Vida, o Homem, na vigília ou no sono, guardava as mesmas características de
inconsciência quanto à própria destinação; em face de tanta dureza, retornou ela
ao Paraíso, onde relacionou o que observara, rogando, então, ao Divino Poder
fosse a Dor enviada ao Homem, com as atribuições de juiz compassivo e reto, a
fim de despertá-lo.
E veio a Dor, e com ele ficou...
Bulhão Pato