O Guia
Necessitando melhorar conhecimentos de orientação, acompanhei
um dia de serviço do guardião Aurelino Piva, Espírito amigo que desempenha a
função de guia comum da senhora Sinésia Camerino, dama culta e distinta,
domiciliada em elegante setor do mundo paulista.
Cabia-me aprender como ajudar alguém, individualmente, na posição de
desencarnado. Auxiliar em esforço anônimo, exercer o amor silencioso e
desconhecido.
Cheguei cedo à residência, cujo pequeno jardim a primavera aformoseada. Quatro
horas da manhã, justamente quando Aurelino preparava as forças de sua protegida
para o dia nascente. Trabalho de humildade e devotamento.
Na véspera, dona Sinésia não estivera tão sóbria ao jantar. Excedera-se em
quitutes e licores, mas o amigo espiritual erguia-se em piedosa sentinela e,
antes que a senhora reabrisse os olhos no corpo, aplicava-lhe passes de
reajuste.
- É preciso que nossa irmã desperte tão hígida quanto possível – explicou-me.
E sorrindo:
- Um dia tranquilo no corpo físico é uma bênção que devemos enriquecer de
harmonia e esperança.
Depois de complicada operação magnética, observei que a tutelada se dispunha a
movimentar-se, e esperei.
Seis horas da manhã.
Aurelino formulou uma prece, rogando ao Senhor lhe abençoasse a nova
oportunidade de trabalho e tive a idéia de tornar a escutar-lhe as palavras
confortadoras: “um dia tranquilo no corpo físico é uma bênção...”
A senhora acordou e o benfeitor espiritual postou-se ao lado dela, à feição de
pai amoroso, falando-lhe dos recursos imensos da vida que estuavam lá fora, como
a buscar-lhe o coração para o serviço com alegria. Dona Sinésia ouvia em
pensamento e, qual se dialogasse consigo mesma, recusava a mensagem de otimismo
e respondeu às benéficas sugestões, resmungando: “dia aborrecido, tempo sem
graça...” Nisso, dois meninos altercaram, lá dentro, com a empregada. Bate-boca
em família. Dona Sinésia não se mexeu. Sabia que os dois filhos manhosos nada
queriam com estudo, nem suportavam qualquer disciplina, mas não deu bola.
Aurelino, porém, correu à copa e eu o acompanhei.
O amigo desencarnado apazigou as crianças e acalmou a servidora da casa, à custa
de apelos edificantes. Ajudou os pequenos a encontrarem os cadernos de
exercícios escolares que haviam perdido e acompanhou-os até o ônibus.
De volta ao interior doméstico, chegou a vez de se amparar o esposo de Dona
Sinésia, que deixara o quarto sob grande acesso de tosse. Bronquite velha. Um
guardião espiritual, ligado a ele, auxiliava-o, presto; no entanto, Aureliano
pensou na tranqüilidade de sua protegida e entregou-se à tarefa de colaboração
socorrista. Passes, insuflações. O chefe da família estava nervoso, abatido.
Aurelino não repousou enquanto não lhe viu o espírito asserenaod, diante da
empregada, a quem auxiliou de novo, a fim de que o café com leite fôsse servido
com carinho e limpeza. Logo após, demandou o grande aposento, em que iniciáramos
a tarefa, rogando a Dona Sinésia viesse à copa abençoar o marido com um sorriso
de confiança. A dama escutou o convite suplicante, através da intuição, mas
ficou absolutamente parada sob os lençóis, e, ouvindo o esposo a pigarrear, na
saída, comentou intimamente: “não vou com asma, estou farta”.
Sete horas. Aurelino estugou o passe a fim de sustentar o senhor Camerino, na
travessia da rua. Explicou-me que Dona Sinésia precisava de paz e, em razão
disso, devia ajudar-lhe o marido com as melhores possibilidades de que dispunha.
E, atencioso, deu a ele, na espera da condução, ideias de tolerância e caridade,
bom ânimo e fé viva para compreender as suas dificuldades de contador na firma a
que se vincula.
Regressamos a casa. Dona Sinésia em descanso. Oito horas, quando se levantou.
Aurelino sugeriu-lhe o desejo de tomar água pura e informou-me de que se
esmerava em defendê-la contra intoxicações. Magnetizou o líquido simples,
dotando-o de qualidades terapêuticas especiais e... continuaram serviços e
preocupações.
Trabalho de proteção para Dona Sinésia, em múltiplas circunstâncias pequeninas
suscetíveis de gerar grandes males; apoio à empregada de Dona Sinésia, para que
não falhassem minudências na harmonia do lar; remoção de obstáculos a fim de que
contratempos não viessem perturbar a calma de Dona Sinésia; socorro incessante
às crianças de Dona Sinésia, ao retornarem da escola; cooperação indireta para
que Dona Sinésia escolhesse os pratos capazes de lhe assegurarem a necessária
euforia orgânica; inspirações adequadas de modo a que Dona Sinésia encontrasse
boas leituras; amparo constante ao senhor Camerino, tanto quanto possível, a fim
de que Dona Sinésia não se afligisse...
Enfim, Dona Sinésia, sem a obrigação de ser agradecida, já que não identificava
os benefícios contínuos que recebia, teve um dia admirável, enquanto Aurelino e
eu estávamos realmente estafados, não obstante a nossa condição de Espíritos sem
corpo físico.
À noite, porém, justamente quando Aurelino se sentou ao meu lado para dois dedos
de prosa, Dona Sinésia, desatenta, feriu o polegar da mão esquerda com a agulha
que manejava para enfeitar um vestido.
Bastou isso e a senhora desmandou-se aos gritos:
- Oh! meu Deus! meu Deus!... ninguém me ajuda! Vivo sòzinha, desamparada!... Não
há mulher mais infeliz do que eu!...
Positivamente assombrado, espiei Aurelino, que se mantinha imperturbável, e
abservei:
- Que reação é esta, meu amigo? Dona Sinésia recolheu socorro e bênçãos durante
o dia inteiro!... como justificar este ataque de cólera por picadela sem
importância nenhuma?!...
Aurelino, entretanto, sorriu e falou paciente:
- Acalme-se, meu caro. Auxiliemos nossa irmã a reequilibrar-se. Esta irritação
não há de ser nada. Ela também, mais tarde, vai desencarnar como nós, e será
guia...
Irmão X