Conto Simples
Malaquias Furtado, conhecido libertino, reconhecendo enfim que
mais valia o dever cumprido as aventuras mundanas, rendeu-se à necessidade
imperativa de renovação espiritual, para a reforma da vida. Para isto, confugiu
à inspiração do Padre Elias Gomes, famoso cura de almas, imaginando nele o guia
ideal.
Recebido cordialmente pelo sacerdote, confessou-lhe as deploráveis experiências
em que se emaranhara, obtendo calorosa doutrinação, como vaso imundo em processo
de lavagem na tina de água fervente.
Malaquias transformado, cumulou-se de juras e promessas, que procurou cumprir
com sinceridade e rigor.
Quando a tentação lhe assaltava o espírito honesto, voltava a ajoelhar-se aos
pés do mentor, suplicando:
- Bom amigo, sinto-me perturbado por desejos inferiores... Tenebrosos
pensamentos agitam minhalma... que fazer para encontrar o caminho do Céu?
Padre Elias logo respondia, calmo:
- Filho, consagre-se a Deus e olvide Satã. Guarde castidade, cultive humildade,
paciência e pobreza. A salvação cabe àqueles que trilham a subida escabrosa da
virtude.
O convertido voltava à arena cotidiana e sufocava os reclamos da carne
indignada, curtindo provações duras que aos poucos lhe burilavam o espírito.
Trabalhava, servia sem alarde e procurava suportar toda espécie de infortúnio
com inexcedível heroísmo.
Eis, porém, novo dia de mais vivas tribulações, e Malaquias regressava ao
orientador, exclamando:
- Devotado protetor, tenho sofrido calúnia e ingratidão. A idéia de vingança
domina-me. Tenho fogo na alma. Que fazer para sustentar-me no roteiro do
Paraíso?
O ministro da fé esclarecia, sereno:
- Tenha paciência, meu filho, muita paciência. Para consolidarmos em nós a
tranqüilidade, é imperioso perdoar infinitamente. Não nos esqueçamos dos velhos
ensinamentos. Desculpemo-nos até setenta vezes sete, oremos pelos nossos
inimigos e perseguidores... Quem ofende, condena-se; quem exerce a tolerância
fraterna, exalta-se.
Malaquias aceitava, confiante, as ponderações ouvidas e tornava, confortado, às
lides que o Céu lhe reservara.
Devolvia o bem pelo mal e continuava, na condição do discípulo fervoroso,
experimentando os conselhos obtidos, disciplinando os seus sentimentos, sorrindo
para os algozes, cedendo aos adversários e mantendo inalterável submissão ao que
considerava como sendo as imposições divinas.
Ressurgiram, porém, outras ocasiões de conflito para o criterioso aprendiz, e
logo se apressava ele em conchegar-se à sabedoria do pastor, clamando, ansiado:
- Meu padre, acho-me fatigado, enfermo, sem rumo certo... Familiares, aos quais
prestei assistência e socorro em outros tempos, abandonaram-me sem comiseração
pelas minhas fraquezas e sofrimentos. Minha esposa, vendo-me imprestável, receou
o sacrifício que a nossa união lhe impunha e aliou-se aos nossos filhos maiores,
hoje casados, contra mim... Vivo sem ninguém... Por ninharias, antigos credores
de minha casa me cercam de ameaças sem termo... Tenho a impressão de que o
inferno se instalou dentro de mim. Debalde busco a claridade da oração, e não
mais a encontro. Padre, padre, que fazer para não me desviar da estrada celeste?
O guia, na atitude convencional dos grandes inspirados, emitindo a palavra doce
e fitando os olhos no céu, respondia, convicto:
- Não se deixe enredar em ciladas e tentações! A fé remove montanhas! quem se
sentirá só, depois de encontrar na Humanidade a grande família? Nossos pais e
nossos filhos respiram em toda parte. Onde alguém esteja lutando, aí possuímos
nosso irmão. Não se perca no desânimo destrutivo. Quem se dirige para Deus não
perde os minutos na peregrinação do bem. Se há dificuldades e sofrimentos, a
coragem é o sustento do espírito na estrada para o mais alto. Sobretudo, meu
filho, não creia na enfermidade. A doença é alguma coisa que depende de nós. A
imaginação superexcitada improvisa monstros para o nosso copo, mas a alma
robusta na confiança, embora viva de pés na Terra, mantém o coração voltado para
o Senhor, cada dia servindo mais intensamente na sementeira de luz e de amor.
Não se agrilhoe a simples ninharia...
O crente leal contemplava o instrutor, como quem se via agraciado pela presença
de um plenipotenciário divino.
Verteu copiosas lágrimas e indagou, por fim:
- E se eu pautar pensamentos e atitudes nessas linhas, encontrarei a passagem
para o céu?
- Como não? – falou o sacerdote, complacente e bem-humorado.
E numa definição, espetacular:
- A virtude é divino passaporte para o Paraíso.
Malaquias tornou à luta e aplicou o que aprendera.
Olvidou a moléstia e dedicou-se ao trabalho constante; transformou a solidão sem
serviço a todos e, cultivando a oração e a bondade, acabou seus dias, de
consciência tranqüila.
Aguardava-o à cabeceira um anjo, que, presto, o arrebatou ao País da Luz.
Participando, agora, do séqüito de santos anônimos, o antigo devoto era
raramente lembrado na Terra. Vivera servindo, não obstante as deploráveis
experiências do início, e, por isso, de tempo não dispusera para cuidar da
propaganda do seu nome. Era, contudo, um dos príncipes mais felizes da Corte
Celestial. Não contava tempo, nem era forçado à contemplação das misérias
humanas.
Acontece, porém, que um dia se ouviu entre as estrelas um chamado insistente
para ele. Vinha do Inferno, diretamente da moradia de Satanás.
Malaquias não se fez rogado.
Solicitou permissão e desceu, desceu, desceu... quando se viu no círculo das
trevas infernais, encontrou quem lhe invocava o nome: era justamente o Padre
Elias Gomes, que lhe estendia os braços e suplicava:
- Malaquias! Malaquias! Compadeça-te de mim! Ensine-me! Onde encontrarei o
Caminho para o Céu?...
Paulo Barreto