Os Escritos Mediúnicos
Há algo de mais pernicioso ao Espiritismo do que os ataques
apaixonados dos seus adversários. É o que os pseudo-adeptos publicam em seu
nome. Certas publicações são simplesmente lamentáveis, uma vez que oferecem da
doutrina espírita uma idéia falsa e a expõem ao ridículo. É de se perguntar por
que Deus permite essas coisas e não esclarece todos os homens da mesma forma.
Haverá algum meio de se remediar esse inconveniente, que nos parece um dos
maiores escolhos da doutrina?
Esta questão é grave e exige algumas explicações. Eu diria, de início, que não
há uma única idéia nova, sobretudo quando ela se reveste de real importância,
que não encontre obstáculos. O próprio Cristianismo foi ferido na pessoa de seu
chefe fundador, taxado de impostor. E seus primeiros apóstolos, seus
propagadores não depararam com detratores terríveis? Por que, então, o
Espiritismo seria privilegiado?
(...) Deplorais as excentricidades de certos escritos publicados sob a cobertura
do Espiritismo. Pelo contrário, devereis abençoá-los, uma vez que é por esses
excessos mesmos que o erro se perde. O que é que vos choca nesses escritos? O
que é que vos ocasiona repulsa e, muitas vezes, vos impede de lê-los até o fim?
Exatamente o que fere, violentamente, o vosso bom senso! Se a falsidade das
idéias não fosse bastante evidente, bastante chocante, talvez a elas mesmas vos
deixaríeis prender, enquanto que os erros tão manifestos, ferindo-vos,
constituíram-se em contravenenos.
Esses erros provêm quase sempre de Espíritos levianos, sistemáticos ou
pseudo-sábios, que se comprazem vendo editadas suas fantasias e utopias e isso
por homens que conseguiram enlear a ponto de fazê-los aceitar, de olhos
fechados, tudo quanto lhes debitam, oferecendo alguns poucos grãos de boa
qualidade em meio ao joio. Mas, como esses Espíritos não possuem nem a
verdadeira cultura, nem a verdadeira sabedoria, não conseguem manter por muito
tempo o seu papel, e a ignorância os trai. Deus permite que deixem escapar em
suas comunicações erros tão grosseiros, coisas tão absurdas e mesmo tão
ridículas, idéias nas quais as noções científicas mais vulgares são demonstradas
com tamanha falsidade, que, ao mesmo tempo, destroem o sistema e o livro que o
contém.
Sem dúvida alguma seria preferível que só fossem publicados bons livros! Mas,
embora tudo se passe de outra forma, é preciso que não temais, para o futuro, a
influência dessas obras. Elas podem, momentaneamente, acender um fogo de palha,
mas quando não se apóiam em uma lógica rigorosa, vede, ao fim de alguns anos, -
muitas vezes de alguns poucos meses, - a que se reduziram. Para tais casos as
livrarias são um termômetro infalível.
Isso me leva a dizer algumas palavras sobre as comunicações mediúnicas.
A sua publicação tanto pode ser útil, se feita com discernimento, quanto
perniciosa, em caso contrário. No número dessas comunicações algumas há que, por
muito boas que sejam, não interessam senão àqueles que as recebem e que
pareceriam, aos olhos dos leitores estrangeiros, simples banalidades. Outras
apenas têm interesse nas circunstâncias em que são transmitidas. Sem o
conhecimento dos fatos a que se relacionam, surgem insignificantes aos olhos do
observador.
Todo esse inconveniente estaria circunscrito apenas aos bolsos dos editores;
todavia, ao lado disso, algumas há que são evidentemente nocivas, tanto por sua
forma quanto por seu conteúdo e que, sob nomes respeitáveis, logicamente
apócrifos, revelam um contexto absurdo ou trivial, o que, naturalmente, se
presta ao ridículo e oferece armas à crítica.
Tudo se torna ainda pior quando, sob o manto desses mesmos nomes, formulam-se
sistemas excêntricos ou grosseiras heresias científicas. Não haveria nenhum
inconveniente em publicar-se essas espécies de comunicações, se as fizessem
acompanhar de comentários, seja para refutar os erros, seja para lembrar que
constituem a expressão de uma opinião individual, da qual não se assume
absolutamente a responsabilidade. Assim, talvez revelassem um lado instrutivo,
pondo a descoberto a que aberrações de idéias podem se entregar certos
Espíritos. Mas publicá-las, pura e simplesmente, apresentá-las como expressão da
verdade e garantir a autenticidade das assinaturas, que o bom senso não pode
admitir, nisso está o inconveniente!
Uma vez que os Espíritos possuem livre-arbítrio e uma opinião sobre os homens e
as coisas, compreender-se-á que a prudência e a conveniência mandam afastar
esses perigos. No interesse da doutrina convém, pois, fazer uma escolha muito
severa em semelhantes casos e pôr de lado, com cuidado, tudo quanto pode, por
uma causa qualquer, produzir uma ruim impressão. É assim que o médium,
conformando-se a esta regra, poderá apresentar uma compilação instrutiva, capaz
de atrair as atenções e ser lida com interesse; mas é também assim que,
publicando tudo quanto recebe, sem método e sem discernimento, será capaz de
apresentar muitos volumes detestáveis, cujo inconveniente menor será o de não
serem lidos.
É preciso que se saiba que o Espiritismo sério se faz patrono, com alegria e
apressuramento, de toda obra realizada com critério, qualquer que seja o país de
onde provém, mas que, igualmente, repudia todas as publicações excêntricas.
Todos os espíritas que, de coração, vigiam para que a doutrina não seja
comprometida, devem, pois, sem hesitação, denunciá-las, tanto mais porque, se
algumas delas são produtos da boa fé, outras constituem trabalho dos próprios
inimigos do Espiritismo, que visam desacreditá-lo e poder motivar acusações
contra ele. Eis porque, repito, é necessário que saibamos distinguir aquilo que
a doutrina espírita aceita daquilo que ela repudia.
Viagem Espírita em 1862, Instruções Particulares dadas aos Grupos em resposta a
algumas das questões propostas, item VI.
Allan Kardec