Numa Cidade Celeste
Quando Joaquim Pires desencarnou, crente sincero e praticante
assíduo
que fora do Evangelho, procurou, incontinenti, as portas do céu.
Combatera as próprias paixões, distribuíra benefícios sem cogitar de
recompensa, humilhara- se em favor dos outros, sempre que as
circunstâncias lhe aconselhavam serenidade e renúncia.
Em suma, Joaquim fora um homem bom. Todavia, como vivemos
sobremaneira distanciados das criaturas perfeitas, andava preocupado
com a idéia de repousar no paraíso. Não tivera ocasião de provar-se em
testemunhos reconhecidamente difíceis e angustiosos. No entanto,
acariciava o propósito de anestesiar-se no "outro mundo". Queria
descansar, esquecer, embriagar-se no êxtase divino...
"Morreu", por isso, sem receio algum. Despediu-se, quase
contente, dos familiares. Parecia andorinha humana, no júbilo de
buscar a primavera noutras paragens. E, como efeito, tantos méritos
detinha consigo, que prodigioso trilho de luz assinalava-lhe o
caminho, desde o túmulo até as portas de uma cidade resplandecente.
Aí chegado, Joaquim, premido pela emoção, empalidecera de
regozijo, enlevado, notou que, lá dentro, havia felicidade e luz, mas
inequívocos sinais de trabalho também... Ruídos de atividade salutar e
sons de campainhas inquietas alcançaram-lhe os ouvidos surpresos.
Antes de se entregar a maiores perquirições íntimas,
simpático mensageiro veio recebê-lo no limiar.
-É aqui o paraíso? - inquiriu à maneira do sertanejo bisonho
que visita grande metrópole pela primeira vez.
-Sim - informou o interpelado, gentilmente -, estamos numa
cidade celestial.
Quer dizer, então, em boa geografia, que já não respiramos a
atmosfera da carne... - tornou o recém-chegado, hesitante.
-Não tanto - esclareceu o enviado fraterno.
De tímpanos aguçados, Pires registrou a chamada dos clarins
de serviço e considerou, tímido:
-Meu amigo, que eu não sou mais do número dos "vivos"...
O outro completou-lhe a frase reticenciosa, asseverando: -Não
padece qualquer dúvida...
-Mas - prosseguiu o "morto" adventício -, trabalham, ainda, aqui?
-Muitíssimo.
-Há, nesta cidade, horários, distribuição de tarefas,
responsabilidades individuais, disposições de lei, lutas e conflitos?
O mensageiro esboçou expressivo gesto de complacência e
observou: - Acredita que a morte da carne, mero fenômeno da Natureza,
purifique o Espírito milagrosamente? Temos enorme serviço a fazer, e o
repouso para nós é lição, reparo ou estímulo. Nossa felicidade não se
cristalizaria em altares imóveis.
-Oh! - clamou Joaquim aflito - a justiça ensinava-me no mundo
que há um paraíso para os bons e um inferno para os maus.
-E você - interrogou o companheiro, intencionalmente - se
julga perfeitamente bom?
-Não - respondeu Pires com humildade não fingida - sou um
pecador, bem o reconheço; contudo... Francamente, não admitia houvesse
tanto serviço após o sepulcro.
-Suporá inoportuno e intempestivo nosso propósito de luta e
solidariedade, melhoria e reconstrução? Quem não é infinitamente bom,
deve amparar quem não é infinitamente mau. É imprescindível atender
aos imperativos da vida.
Só Deus é o Absoluto.
-Sim, compreendo... - resmungou Joaquim, descoroçoado -
todavia, sonhava com a paz perpétua.
E continuou:
- Existe aqui chefia e subalternidade?
- Perfeitamente.
- Servidores melhores e piores? - Sim, em mais elevado padrão
de justiça e aproveitamento.
- Há estudos e provas, especializações e obrigações?
- Muito além dos ensaios que efetuamos na Terra...
- Há probabilidades de erro e dúvida, discussão e negação?
- Em todas as rotas de ação, porque o livre-arbítrio da alma
evolvida é naturalmente a cooperar na estruturação dos destinos, com a
supervisão da Vontade de Deus.
- Conseqüentemente - prosseguiu Joaquim -, há reparações e
punições, desequilíbrios e dificuldades.
- Exatamente. Você não ignora que onde o erro é possível deve
existir recurso para a corrigenda.
O recém-desencarnado meditou, meditou e aduziu:
- Procuro o repouso inalterável... Quem sabe resplandece em
esfera mais elevada o céu que busco?
- Assim não é - disse-lhe o interlocutor. Quanto mais alto
subir, mais trabalho encontrará, embora em condições diferentes.
Pires, sentou-se, apalermado, sob indizível abatimento.
O emissário fixou um gesto de bom humor e acentuou com
clareza: - Parece-me que o paraíso, sonhado por você, é o éden da
espécie "Limax arborum". Essas criaturas, que no fundo são igualmente
filhas de Deus, organizam o próprio lar, através de folhas e flores.
Aquietam-se e dormem descansadas sob a claridade do firmamento. Nada
perguntam. Não riem, nem choram. Desconhecem os enigmas. Não sabem o
que vem a ser aflição ou dor de cabeça. Alimentam-se daquilo que
encontram nas árvores preciosas da vida. Ignoram se há guerra ou paz,
dificuldade ou pesadelo entre os homens. Vivem alheias aos dramas
biológicos, aos conflitos espirituais e, se um cataclismo fulminasse o
Universo em que nos achamos, não registrariam grandes diferenças...
-Oh! - gritou Joaquim, repentinamente entusiasmado - quem são
esses seres privilegiados?
-São as lesmas - esclareceu o emissário, sorrindo -, e se
você descer, suficientemente, encontrará o paraíso delas...
Joaquim modificou a expressão facial e, embora consternado,
quando ouviu falar em lesmas, resolveu entrar.
Irmão X