Amor e Desejo
Quem ama, quer, quem quer, deseja. O amor desinteressado é uma
lenda piedosa. O interesse nasce da essência do ser. A sua projeção no plano
existencial é determinada pelo interesse da comunicação. Esse interesse básico
permanece e o domina em toda a sua existência. Comunicação é relação e nesta
surgem os atrativos das coisas, das situações e dos seres. Os atrativos formais,
situacionais, psicológicos e culturais provocam e estimulam o interesse
recíproco entre os pares. O interesse inicial desencadeia a seqüência de
interesses que os levará ao despertar do amor, da querência e do desejo. Querer
é desejar sem apego, no plano superficial das necessidades imediatistas. Desejar
é querer com anseio, sob a ação dos instintos, das forças inconscientes do
existente, o ser entregue às exigências vitais do condicionamento humano. Dessas
especificações decorrem os vários tipos do amor, desde o instintivo animalesco
até o espiritual e sublime, que empenha no amor a totalidade do ser. A paixão é
o delírio do ser premido pela ação múltipla e confusa de todos esses vetores em
explosão psico-biológico.
Definir essas várias manifestações do amor é uma necessidade da disciplinação do
comportamento e da conduta. O comportamento disciplinado racionaliza a conduta e
previne os enganos fatais do amor, evitando o delírio da paixão sem asfixiar ou
atenuar as expansões naturais do amor. A pesquisa sobre o amor não pretende
aniquilá-lo nem conformá-lo a modelos e padrões, mas apenas tornar os amantes
conscientes, pelo conhecimento do terreno em que pisam, das ilusões e excessos a
que podem ser arrastados. Em todas as situações existenciais o conhecimento da
realidade é indispensável ao êxito. As correntes da energia amorosa participam
ao mesmo tempo das aspirações espirituais e dos impulsos vitais. Só o
conhecimento racional dessa condição do amor pode nos dar o domínio do espírito
sobre ele através da razão, que é o espírito em atividade na existência. Não há
força de vontade que possa dominar o amor, pois o amor joga com a vontade desde
a sua manifestação inicial, sem dar tempo à reflexão, que é logo posta a serviço
e em função do interesse do amor.
Todas as divagações sobre o amor nascem do seu fluxo já desencadeado e servem
apenas para estimulá-lo. A experiência do amor não informa sobre ele, pois é
feita de desejos e frustrações com resultados traumáticos. Por isso os homens
maduros e até mesmo os envelhecidos se comportam no amor com a afoiteza e a
inexperiência dos jovens.O ridículo dos amores maduros decorre dessa situação
etária desconexa. Não há conexão entre as exigências do amor e as da idade
madura ou senil no comportamento social. Essa falta de conexão exaspera os
amantes extemporâneos, tirando-lhes a possibilidade de agir com moderação e
prudência.Simone de Beauvoir protesta, em seu livro sobre a velhice, contra a
negação social aos velhos do direito de amar. Um protesto inócuo, pois o
problema decorre de uma defasagem etária em que as condições naturais do
processo existencial são violadas pelos amantes, o que determina o desajuste
indisfarçável da sua posição social.Os velhos não perdem o direito de amar, pois
a lei do amor é eterna e insubmissa às ordenações temporais. Mas as próprias
condições biológicas da velhice mostram que esse direito deve ser exercido num
sentido mais amplo e espiritual. O desgaste das energias físicas anuncia o fim
do ciclo existencial e a libertação do espírito para dimensões mais amplas da
realidade. É nesse momento que toda a experiência existencial dos velhos
fracassa ante o instinto de conservação e o fluxo poderoso das energias da
afetividade. Quando os velhos resistem ao desgaste físico e mantêm a juventude
do espírito – pois esse não envelhece, deixando-se apenas influenciar pela
velhice do corpo – a ilusão de uma condição vital ainda equilibrada pode
levá-los a tentar aventuras amorosas de conseqüências perigosas. A pesquisa
sobre o amor revela que a própria virilidade física pode manter-se até a mais
alta idade, tanto no homem como na mulher.Mas demonstra também que as condições
favoráveis da velhice conservada não passam, em geral, de um curto período
existencial, e mesmo quando se prolonga mais do que se pode esperar, é sempre
seguido de conseqüências que embaraçam ou perturbam as relações do casal em
desnível crescente, criando-lhes problemas insolúveis.
Ao amor da velhice é oferecida a opção da família, das novas gerações que
brotaram do tronco agora envelhecido, mas ainda firme e erecto, com suas raízes
agarradas ao chão e seus ramos abertos ao céu. Vargas Villa, já nas proximidades
dos sessenta anos, revisando Ibis, livro da juventude, para uma reedição na
Itália, deixou-nos um testemunho impressionante do envelhecimento consciente e
carregado de belezas e emoções insuspeitadas:
“Como habrá quien puede llegar a estas alturas de la vida, em que de pié, sobre
la cimbre de la edad, divisamos a nuestros piés las llanuras de la Vejez y
enpezamos a descender a ellas com uma fronte gravida de pensamientos y nun ritmo
suave, como de subito nos hubiesen nascido unas alas muy tenues, echas para
volar em el crepusculo? El Sol, violador de todas las tiniebras, no tiene ya, em
la casta quietud de esse horizonte, nada que violar.”
Não se trata de uma conformação forçada, mas de um amortecer natural das
trepidações da existência, na fase de chegada ao destino, quando o navio diminui
a contagem dos nós à vista da terra próxima, ou quando o avião abranda a fúria
das hélices para ensaiar o pouso tranqüilo e seguro na pista certa e precisa do
aeroporto. Todas as batalhas foram vencidas, para aquele que soube lutar com
plena consciência dos seus objetivos. Por isso o espírito se quieta no corpo
envelhecido e o homem sorri com leve ironia, toda de auto-piedade, lembrando as
refregas ardorosas em que se atirara coroado de louros que murcharam na esteira
do tempo. Se soube aprender as lições existenciais, seu coração se abre para os
filhos e netos, cercado de carinho e respeito. É então que as aves se acolhem
aos ramos das suas experiências, como no soneto de Bilac. Trocar essa serenidade
em que o passado ecoa surdamente, à maneira do marulhar das ondas numa concha
vazia, pelas inquietações de uma reconstrução impossível é expor-se desavisado
aos fracassos e ao ridículo. Knut Hamsum adverte: “Um vagabundo toca em surdina,
quando chega aos cinqüenta anos.”
O envelhecer é o anoitecer existencial. Ao cair do crepúsculo, aqueles que
envelhecem normalmente sentem as asas tênues de Vargas Villa, o impetuoso
escritor colombiano que empolgou a Europa de fins do século passado com seu
estilo vibrante e nervoso, retumbante como o do Corão. Se houve alguém que devia
ter dificuldades para envelhecer, foi sem dúvida Vargas Villa. Mas podemos ver,
no pequeno trecho que dele transcrevemos, em sua própria língua, tão apropriada
a ele, como essa inteligência vulcânica soube compreender a beleza da hora
crepuscular. Era um solitário que amava o mundo e a vida expansiva, numa
intimidade telúrica e vivencial que só ele conseguia manter. Falava de seu amor
em estilo pirotécnico, mas o cultivava às escondidas, num “tête-à-tête”
ciumento. Esse intimismo o preparou para tocar em surdina, obedecendo ao ritmo
da vida.
Na proporção em que o organismo físico decai, diminuindo a intensidade dos
impulsos, a existência se torna cinzenta. Mas, ao mesmo tempo, o colorido do
poente anuncia um novo alvorecer. E quando as trevas envolvem a paisagem, as
estrelas assaltam o céu numa revoada de mundos insuspeitados. É a hora em que o
ser descobre a sua ligação secreta com o Cosmos, a sua união profunda com o
Todo. O espírito se desliga lentamente dos particularismos do planeta para
vislumbrar a imensidade que o espera, a eternidade dinâmica que o atrai. As asas
tênues do crepúsculo convertem-se em asas estelares das almas viajoras de
Plotino. Insistir no apego à vida terrena, ao plano existencial, é lutar contra
a realidade universal inelutável. Não são apenas os velhos que morrem, mas na
velhice a morte é o prêmio da vida, pois esta se desdobra em novas e
surpreendentes perspectivas nos ritmos do envelhecer. A maior e a mais brilhante
dessas perspectivas é a do amor, que se amplia em todas as direções e eleva-se
nas hipóstases do Inefável, onde as mãos de Beatriz nos mostram as revoadas
dantescas de asas angélicas. Repudiar essa oferta divina para tentar
readaptações mesquinhas e inviáveis no mundo dos homens é negar-se a si mesmo. O
ser que se entrega confiante a esse arrebatamento não teme envelhecer. Descobre
por si mesmo a harmonia perfeita dos ritmos da vida, na sucessão gradual das
fases existenciais, em que a velocidade interior dos impulsos vitais acompanha a
invariabilidade dos ritmos exteriores, numa conjugação inexplicável,determinada
por um esquema sutil de leis desconhecidas. Arrebatado pela morte, que assusta e
horroriza os jovens, o espírito amadurecido na experiência existencial descobre
a si mesmo e entra na posse da herança que o esperava segundo o ensino do
Apóstolo Paulo. Não encontra o Céu das lições religiosas, nem o paraíso terreno
dos árabes com suas urís e seus profetas, mas a realidade essencial das coisas e
dos seres, em que se identifica com a sua própria realidade.
Os que não venceram na projeção existencial, identificando-se com as etapas da
existência, apegando-se às formas perecíveis da rotina vivencial, sem descobrir
o sentido da descoberta filosófica de que a existência é subjetividade pura,
permanecem prisioneiros de si mesmos, amarrados a ídeo-cristalizações do
passado, apegados às hipóstases terrenas e às aparências de uma velhice
estacionária e por isso mesmo irreal, que só neles existe.
Os velhos são geralmente acusados de retrocesso ao egocentrismo infantil.
Engolfam-se em suas recordações e só amam a si mesmos. A velhice não deforma o
espírito, apenas o liberta. O egoísta se engolfa no egoísmo que cultivou na
existência. O espírito aberto e generoso continua a ser o que era. Mas o
desencanto do mundo e da vida, a superação das ilusões tornam geralmente os
velhos mais introspectivos, desligados de uma realidade exterior que para eles
não tem mais nenhum segredo. Mas o amor permanece em seus corações como a chama
solitária do Templo de Vesta, sempre alimentada pelas vestais das lembranças e
das experiências adquiridas. A chama tranqüila, acesa na penumbra do templo, não
tem os lampejos de outrora, mas não se apaga. É o fogo de coivara das queimadas
sertanejas, que dorme nas brasas entre as cinzas e pode reavivar ao sopro dos
ventos. Basta o desencadear de acontecimentos inesperados, com lufadas que
atinjam a sua sensibilidade, para que o amor dos velhos se erga novamente em
labaredas de abnegação e sacrifício. É o que se vê nos grandes momentos
históricos e até mesmo no âmbito de instituições privadas, quando velhos
lutadores retornam à liça para defender os seus antigos ideais.Nas lutas da
última conflagração mundial, quando a loucura nazi-facista empolgou multidões
alucinadas, vimos os velhos lutadores do passado, encastelados em suas posições
definitivas ou até mesmo em seu repouso, levantarem-se como barreiras ante a
ameaça dos bárbaros. Churchill voltou, com seu charuto à boca, a erguer o V da
vitória aparentemente impossível sobre as ruínas de Londres. Roosevelt deixou as
comodidades de Washington para agir como um jovem guerreiro em defesa dos ideais
democráticos. Stalin saiu de sua toca de urso para deter nas estepes geladas o
avanço das tropas nazistas. Mas um velho egoísta não titubeou, após a morte de
Roosevelt, em ordenar o genocídio atômico de Nagazaki e Hiroshima, porque em seu
coração o amor pela humanidade jamais conseguira lampejar. Na França, Petain, o
velho herói do Marne, aturdido com o esmagamento impiedoso da pátria, expôs-se à
vergonha de Vichy para poupar,à custa de sua própria desonra, a população
indefesa.
Esses exemplos históricos, e tantos outros que se perderam no anonimato das
terras martirizadas, dos povos esmagados pela catástrofe, mostram que no coração
dos velhos a chama do amor continua acesa enquanto as condições físicas do
cérebro permitirem a atividade espiritual da mente.
Naqueles em que o amor se elevou aos planos do altruísmo, os desejos
individuais, dirigidos pelas forças genéticas, apagam-se para dar mais brilho
aos anseios de sublimação. Os prazeres sensoriais perdem o seu encanto e são
substituídos pelas aspirações do futuro, entrevistas na paranormalidade das
percepções extra-sensoriais. O ser do corpo emudece ante o contínuo e secreto
murmurar do ser espiritual. É graças a isso que a aparência juvenil de certos
velhos não corresponde à realidade de sua inevitável decadência orgânica. A
chama do amor sustenta o corpo envelhecido.
Herculano Pires