Marias: Falando de Mulheres
Mary, Marie, Miriam, todas são Marias, possivelmente um dos
nomes femininos mais usados. É belo, significativo para nós ocidentais,
herdeiros das culturas grega, romana, judaica e cristã.
Recebemos um legado marcado por “Marias”: machismo-patriarcal, religiões cheias
de paradoxos que estabelecem divisões, dificultando a integridade da pessoa,
moldando o pensamento e aprisionando consciências ao longo de séculos. É sob
esse enfoque que propomos refletir um pouco sobre as Marias e sobre nós,
mulheres, todas Marias de alguma forma.
Na tradição religiosa, a figura feminina surge calcada em Marias: Virgem Maria,
mãe de Jesus, “a nossa senhora” (a dominante) e Maria de Magdala. Essas duas
mulheres tornaram-se ícones da sociedade cristã-católica que surge e impera no
ocidente. Quer queiramos ou não, nossa visão sobre feminilidade vem
indelevelmente marcada por uma das duas.
Maria, mãe de Jesus, é a figura beatífica da “mãe”. Não uma mãe comum como a
natureza possibilita a mulher: é uma mãe divina que concebeu virgem, sem nenhum
contato sexual. E aí começam as cisões impostas à personalidade feminina
idealizada na sociedade ocidental. Ela tem que ser “livre do pecado”,
“assexuada”, feita para a maternidade, que é coisa santa e para a qual deve
sacrificar todo seu ser e sua existência.
Ser mãe, na espécie humana, não pode ser visto apenas como ter filhos
biológicos. Maternidade é antes de tudo função emocional, psicológica. Gerar um
corpo é função de meses; auxiliar na formação da personalidade, orientar para
uma vida saudável e responsável em todos os aspectos é tarefa de muitos anos,
que exige sensibilidade, equilíbrio entre razão e sentimento a fim de que os
filhos sejam seres humanos equilibrados.
Além da matéria, maternidade é o sentimento capaz de dar suporte emocional,
psíquico e educacional a outro ser e assim participar da co-criação da vida. É
sentimento, transcende o decantado instinto materno, típico da fêmea do reino
animal, que cessa tão logo a cria adquira independência.
A fêmea, do reino animal, guiada totalmente pelo instinto, “sacrifica” sua vida
adulta à reprodução, é escrava do instinto que a leva a cios e gestações
periódicas. Essa é visão dominante nas religiões quanto à maternidade: toda
mulher nasceu para ser mãe e é aí que ela se realizará. Conseqüentemente,
qualquer método contraceptivo é proibido e o sexo deve ser praticado apenas com
vistas à reprodução, dentro do casamento. Assim, a mulher estará preservando o
legado da “Virgem-mãe”. Entendendo que somos espíritos imortais, com instinto,
sentimento e razão, a visão muda: o ser humano deve ser consciente e é para
conquistar essa qualidade que está encarnado neste mundo. Homem ou mulher, é
preciso estar bem consigo mesmo primeiro, para depois pensar em assumir
responsabilidades quanto ao outro.
A figura de Maria, “mãe de Deus”, é exaltada desde o século VI d.C: era uma
figura totalmente apagada e as mulheres eram criaturas “sem alma”, no sentido
literal, de inexistência mesmo, segundo os conceitos da Igreja que influenciavam
em todas as áreas do saber. Nessa época a figura de Jesus foi divinizada pela
Igreja Católica, passando Ele a ser considerado como o “deus” que se fez homem.
Por conta disso os conceitos de Deus e de Jesus, se fundiram, afastando Jesus do
comum da experiência humana. Mas havia o problema de que como homem Ele havia
nascido de uma mulher. Perguntava-se, então, como um “deus” poderia nascer de um
ser sem alma? Uma possível solução para o impasse: santificar também a mãe de
Jesus. Maria passa, então, a ser uma mulher virgem que concebeu diferentemente
de todas as outras e contra todas as leis da natureza. Aceita-se que todas as
mulheres tenham alma e se constrói o mito. Começam a proliferar os cultos à
Maria Santíssima, mãe de Deus, e vem toda uma carga de adoração às virgens:
virgem mãe, virgem Maria, virgem daqui, virgem de lá. Em todo e qualquer canto
onde se coloque uma imagem feminina para servir como exemplo e ser amada é uma
virgem ou é uma mãe. E assim os conceitos em torno da mulher vão ganhando
contornos, ou seja, as virtudes femininas são: ser celibatária ou ser mãe. Toda
mulher virtuosa deverá vivenciar sua sexualidade obedecendo aos instintos para
reproduzir e tornar-se mãe, assim recobrará sua pureza e santidade perdidos pela
prática do pecado sexual; ou então, a mulher será celibatária e se orgulhará de
sua extremada pureza.
Centenas de gerações de mulheres viveram esses conceitos, absolutamente
incompatíveis com a natureza humana. E se, atualmente, com relação à virgindade
e à prática sexual para reprodução muita coisa já mudou, a quantidade de
publicações falando da problemática da sexualidade feminina prova que muito do
mito e da secular castração da mulher ainda permanece enraizado no inconsciente
humano. Digo humano, pois penso que ele ultrapassa os limites do feminino.
A sexualidade feminina e todo contexto que ela envolve, passando pelo papel de
mãe, ainda está cercada de mitos, idealizações e preconceitos incutidos pelo
pensamento religioso, centrado nas “Marias”.
Maria, mãe de Jesus, é retratada como a boa mulher, pois reúne três aspectos: a
esposa de José, mãe exemplar e também a celibatária. Ela não tem formas
femininas, seu corpo está sempre totalmente coberto por mantos que lhe encobrem
também os cabelos, a cabeça sempre baixa. É uma figura assexuada e submissa, de
rosto triste, sofredor, olhar apagado e sem vida. Esse foi e é o ideal propagado
pelas religiões para a mulher ocidental. A busca para vivenciar e atingir esse
ideal fez muitas gerações de “mulheres infelizes e virtuosas”, que eram esposas
de maridos com amantes e extremadas mães superprotetoras e dominadoras, que
cobravam dos filhos o sacrifício da própria existência e felicidade. Chegavam
aos quarenta ou cinqüenta anos em crise existencial, pois com a independência
dos filhos não tinham mais razão de viver e tornavam-se “a SOGRA” – aquela
figura terrível para quem ousasse se relacionar com seus rebentos, ciumenta e
competitiva, por ser uma mãe de instintos, não de sentimentos.
Essa cultura religiosa divorciou a mulher da maternidade, divorciou também a
esposa da amante e a mulher de si mesma, da sua natureza, da sua
individualidade, algo que muitas ainda não descobriram que possuem. Essa cultura
reduziu a experiência feminina. Fez com que, embora libertas exteriormente da
opressão cultural, muitas ainda padeçam interiormente, sem conciliação com a
própria individualidade e apresentem-se assim: eu sou a “fulana de tal”, mãe do
“beltrano”, mulher do “cicrano”. Dando a conhecer que primeiro são mães, depois
esposas/companheiras e que seus nomes, sem esses complementos, não dizem nada,
ou seja, se não estão tuteladas por figuras masculinas, inexistem. Entretanto,
como estabelecer relacionamentos saudáveis na base do eu + você, se sempre a
própria individualidade foi sufocada, quase inexpressiva? Isso tudo gera
cobranças inevitáveis e onde há cobrança há amor condicional e, por
conseqüência, há desequilíbrio nas relações de dar e receber.
O mito da virgem sagrada mutilou a individualidade e a capacidade feminina.
Obedecendo a esse estereótipo a mulher não poderá ser feliz.
Talvez a compulsão humana por separar, cortar, dividir, destruir unidades, seja
um reflexo da nossa condição evolutiva, da nossa infância espiritual e
precisemos, tal qual as crianças, quebrar nossos brinquedos para ver como
funcionam, pois não conseguimos aprender apenas enxergando o todo, a unidade:
daí tantas dicotomias.
Na cisão da feminilidade, operada pelas religiões, nós vemos a outra face da
mulher, a face viciosa, representada por Maria de Magdala, a conhecida Maria
Madalena, a pecadora arrependida.
Interessante que a visão dominante na nossa cultura foi a de Maria, Nossa
Senhora; entretanto, nos Evangelhos, que são a base de toda essa história, ela é
citada poucas vezes, enquanto Maria de Magdala é a mulher mais citada.
Apresentada como símbolo do pecado e como prostituta, embora tudo isso careça de
comprovação, é historicamente conhecido que a Igreja Católica na Idade Média
confirmou e difundiu. Toda essa confusão pelo simples fato de que não se conhece
na vida dela uma identificação com figuras masculinas. Naquela época, a cultura
judaica impunha a tutela das mulheres. Assim, elas eram identificadas como as
filhas de ..., a mulher de ..., a irmã de ..., a mãe de algum homem. Madalena
identificava-se pela cidade natal – Magdala – uma pequena vila de pescadores na
Galiléia. Toda sua história leva a crer que ela era uma mulher sozinha e
próspera, e que por isso, era alguém que afrontava preceitos, sendo mal vista na
sociedade por esse comportamento.
A ela atrelou-se tudo o que há de ruim: prostituta, endemoniada, pecadora
condenada pelos sete pecados capitais (inspirados nos sete demônios de que Jesus
a libertou), especialmente a luxúria. Sem dúvida, a principal pecha é de
prostituta, aliás, nada como atacar a sexualidade de uma mulher se o intuito é
rebaixá-la e desmoralizá-la.
Tudo o que há de imperfeito e todas as culpas da humanidade repousam sobre a
sexualidade da mulher, cuja precursora foi Eva e posteriormente Madalena, sua
mais fiel filha.
A luxúria é o pecado mais próximo desta Maria-mulher, apresentada como o
contra-ponto da mãe, da virgem. Milhares de mulheres foram educadas, desde o
surgimento da cultura religiosa, cheias de castrações, medos, vergonhas e
culpas. O sexo era imundo e as tornavam impuras: só a maternidade lhe traria a
pureza e a santidade que foram perdidas.
Diferente de Maria, a mãe, Maria Madalena é retratada como o protótipo da mulher
fatal: longos cabelos, seminua, no olhar o brilho do êxtase. Freqüentemente sua
imagem vem acompanhada de um vaso de óleo em clara referência a cena em que
banha os pés de Jesus com uma essência cara e perfumada e seca-os com os
próprios cabelos. Imagem muito sensual, narrada no Evangelho e que Jesus não
repudia de forma alguma; ao contrário, aceita o carinho, entende-o na
profundidade da gama de emoções que representa e no próprio contexto dizendo
que, onde quer que seu Evangelho fosse ensinado, fosse também contado o que
aquela mulher havia feito. Podemos supor que Jesus aceitou o carinho, porque
tinha necessidade de conforto num momento crucial de sua trajetória. A cena fala
de sensualidade e de necessidade afetiva. Maria de Magdala é a figura da mulher
com sua individualidade feminina. Afinal, nenhuma de nós nasce mãe ou esposa ou
companheira, ou qualquer outra coisa: antes de tudo somos espíritos encarnados
no sexo feminino. Ao enxovalharem a figura de Madalena, justamente a imagem da
mulher é que foi desprestigiada, bem como seu papel na divulgação cristã.
O conflito feminino Maria Madalena versus Virgem Maria (Nossa Senhora) se
reflete na sociedade na visão de homens e mulheres a respeito da sexualidade
feminina e na maneira com que elas se expressam sexualmente.
Não são poucos os relacionamentos que naufragam quando a mulher se torna mãe.
Seus companheiros afastam-se preferindo a companhia de outras “pecadoras”. Eles
entendem que as esposas se esquecem da sua individualidade em virtude da
maternidade e se esquecem também de que devem somar, e não dividir o afeto.
A Igreja havia criado a cisão entre espírito e sexo através da qual
espiritualidade era sinônimo de abstinência sexual. A história de Maria Madalena
e a visão sobre a sexualidade feminina foram desvirtuadas por incomodar a Igreja
neste aspecto, pois Madalena mostrava uma individualidade feminina, mostrava-se
como uma mulher que viveu ao lado de Jesus, tornando-se discípula e
acompanhando-O em todos os momentos, inclusive quando todos os outros homens O
abandonaram e O negaram.
No martírio da crucificação a presença de Maria Madalena ao pé da cruz, até o
momento final, testemunhando seu amor ao Mestre e sua confiança em seus ensinos,
é contada em todos os Evangelhos. Foi também ela quem procurou seu corpo e
dialogou com o Mestre em espírito. Foi nesse momento que Jesus anunciou a
sobrevivência à morte e demonstrou a comunicabilidade do espírito. Fato delatado
ao mundo cristão que nascia.
Uma mulher forte, destemida, polêmica, corajosa e acima de tudo, humana
(admitindo dores e prazeres). Essa é a personalidade de Maria Madalena que me
encanta: vejo nela a representação da individualidade feminina. Até mesmo todas
as perseguições que sofreu e sofre falam dos preconceitos de que a mulher de
carne e osso tem sido alvo, desde aqueles tempos. Essas perseguições não
contrapõem o mito, o ideal quase patológico. A história de Maria Madalena
retrata a dignidade da superação, da dedicação, da coragem de viver suas
verdades, da capacidade de entrega incondicional, sem perder sua individualidade
de mulher.
A mulher que se aceita como ser humano antes de qualquer outro papel entenderá
que a lógica será sempre estar bem com sua individualidade e assim desempenhar
bem os outros papéis que a vida lhe oferece, inclusive os relacionados à
sexualidade.
A Doutrina Espírita, desmistificando as leis de evolução e de igualdade,
convida-nos ao desenvolvimento de uma personalidade integral, sem mitos, real,
reconhecendo e explorando todas as potencialidades das condições em que
encarnamos.
Todas ainda temos algo desse legado de Maria, dessa divisão. É hora de nos
tornarmos apenas Maria, sem múltiplos nem divisões, aprendendo o máximo que a
experiência feminina tem a ensinar.
Ana Cristina Vargas - Delfos