Opção e Determinismo

Alguns fatos lamentáveis têm abalado a sociedade brasileira com certa intensidade e podemos analisá-los à luz da Doutrina Espírita.
Diante de crimes hediondos, suicídios, tragédias provocadas (como atentados e seqüestros dramáticos), a perplexidade domina os círculos da sociedade humana. Seria o caso de se perguntar: os autores intelectuais ou executantes de tais atrocidades nasceram com tal “missão”, ou sejam, vieram programados para serem instrumentos da maldade, da inconseqüência? O que o Espiritismo tem a dizer?
Não! Absolutamente não! Todos os que habitamos o planeta estamos destinados ao progresso, ao bem geral, à harmonia na convivência, convidados à solidariedade. Nunca poderemos dizer que tudo que acontece na vida de qualquer pessoa “já estava escrito antes”, pois esta afirmação contraria o bom senso, a lógica, e mesmo a autêntica e real possibilidade que sempre temos de alterar o rumo dos fatos.
Conforme explica O Livro dos Espíritos nas questões 851 a 867 (que recomendamos ao leitor para aprofundar o assunto), de “fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é mesmo”, sintetizando as respostas às questões citadas.
Na Revista Espírita, de junho de 1866, o Codificador apresenta interessante caso de tentativa de assassinato de um Imperador da Rússia, que foi noticiado pelo Independance Belge, de 30 de abril de 1866, com detalhes minuciosos das circunstâncias em que ocorreu o atentado, seguido de indícios precursores do crime (a notícia reproduzida por Kardec não está completa, com os detalhes, porém comunicação recebida em Paris no dia 1o de maio dá notícias dos detalhes, razão pela qual o Codificador deve ter omitido a transcrição completa do jornal).
Na seqüência, Kardec comenta a questão, inclui a comunicação mediúnica na íntegra e ainda faz observação complementar. O caso chama a atenção pela riqueza de detalhes que salvaram a vida do Imperador e constitui substancioso material para estudo do tema. O fato é que um jovem, por uma circunstância que o leitor poderá conhecer lendo diretamente na Revue, desviou-se do seu caminho naquele horário em que haveria o atentado, seu olhar foi atraído para o pretendente à violência e teve oportunidade de desviar a consumação do assassinato.
É o assunto que estamos tratando. Allan Kardec, com sua lucidez e coerência, analisa exatamente o livre-arbítrio de agir ou não agir, enquadra a questão da lei de causa e efeito, a ação da providência divina nas provas escolhidas pelo espírito considerado vítima e ainda aborda o sempre empolgante tema da fatalidade e do determinismo dos fatos.
Selecionamos do precioso texto o seguinte comentário do Codificador: “A vida do imperador devia ser preservada; (...) uma mosca poderia picar a mão do assassino e obrigá-lo a um movimento voluntário. Uma corrente fluídica sobre ele dirigida poderia ter-se dado um deslumbramento. (...) Mas se tivesse soado a hora fatal para o czar, nada poderia tê-lo preservado.(...)”
Ocorre que no planejamento de uma nova existência, o então futuro reencarnante escolhe o gênero de provas que deseja passar (visando seu próprio aprendizado) e pelo fato dessa escolha se expõe a determinadas situações de risco que podem colocá-lo diante da perspectiva de praticar um crime, um delito, uma tragédia. Porém, e aí está o “x” da questão: qualquer pessoa sempre tem a liberdade de agir ou não. Sempre pode optar por fazer ou deixar de fazer.
Desta liberdade de ação, característica do livre-arbítrio, decorrem conseqüências pelas quais todos responderemos, criminal ou moralmente – no caso de danos causados a terceiros ou à sociedade em geral –, ou colheremos os frutos do mérito no caso das boas ações. E as conseqüências danosas no campo moral, nem sempre conhecidas ou reparadas pela justiça humana, repercutem nesta mesma ou em futuras existências nas limitações e dificuldades que uma única existência jamais conseguirá explicar.
Por isso é melhor agir no bem. Pensar bem antes de agir, para não ter do que se arrepender e reparar no futuro. Reparação muitas vezes difícil e extremamente dolorosa.
E na comunicação mediúnica obtida pelo médium Sr. Desliens, o espírito Moki declara, já no início de seu comentário: “(...) Os principais acontecimentos de sua vida são determinados por sua provação; os detalhes são influenciados por seu livre-arbítrio. Mas o conjunto da situação foi previsto e combinado antecipadamente por ele próprio e por aqueles que Deus predispôs à sua guarda (...)”
E alguém poderia perguntar sobre a situação das vítimas. Como ficam essas pessoas? Por que sofrem atentados e se tornam vítimas de crimes passionais, etc? Podemos acrescentar outras questões: Por que Deus permite? Por que uns se livram inesperadamente de determinados perigos, enquanto outros deles são vítimas? Por que ocorrem com uns e com outros não? Qual o critério para todas essas situações?
Se analisarmos todas essas dúvidas sob o ponto de vista de uma única existência, não teremos saída. Ficaremos em infindáveis conjecturas que não responderão às questões.
Na verdade, já vivemos muitas existências. Somos espíritos em aprendizado e para isso retornamos à vida na Terra por múltiplas vezes, com a finalidade de evoluir, de aprender e principalmente visando harmonizarmo-nos com possíveis antagonistas do passado. E, se hoje, que já alcançamos muito progresso material e algum progresso moral (e ainda erramos com grande intensidade), podemos imaginar que no passado – recente (que pode ser inclusive na presente existência) ou distante –, quando éramos ainda mais ignorantes sobre as questões morais, devemos ter cometido erros ainda mais graves.
Ora, os equívocos e principalmente os erros intencionais causam conseqüências aos seus autores. Todos nós trazemos essas marcas danosas do passado, variando a intensidade e gravidade de pessoa para pessoa, e naturalmente aguardando reparação.
Muitas vezes, portanto, o que vemos – com nossa limitada visão – como tragédias, significa apenas a prova solicitada por determinado espírito para reparar-se consigo mesmo diante de atrocidades praticadas no passado. Quanto aos autores dessas atrocidades, como comentamos acima, não vieram como instrumentos para tais ações. Optaram por praticá-la, já que tinham a possibilidade de não serem seus autores. Se o fazem, assumem as conseqüências. E não se julgue previamente que isso cria um círculo vicioso, porque há outras também sofridas tragédias (e são inúmeras) que ocorrem independente de qualquer vontade humana, como acidentes e situações totalmente inesperadas que ceifam vidas e resgatam consciências culpadas que desejavam libertar-se do grande peso moral que carregavam. E como não conhecemos a história completa, não podemos julgar...
Seria o caso agora de indagar: haverá um determinismo? Alguém que sofre uma violência brutal, com ou sem morte da vítima, estaria predestinado a sofrer tal ação. Isto não seria um outro determinismo? Ou, em outras palavras, a pessoa veio programada para sofrer tal ou tal brutalidade? Do ponto de vista dos autores, já vimos que ninguém vem predestinado a cometer o mal, pois tudo depende da sua opção e liberdade. Mas, e perguntamos novamente, e as vítimas?
A conhecida citação de que “o amor cobre a multidão de pecados” (1Pedro 4:8) cabe neste contexto. Alguém poderá realmente ter cometido muitos erros, prejudicado muita gente, feito atrocidades contra terceiros. Isto em absoluto quer dizer que ela terá que sofrer os mesmos tormentos que fez outros sentirem. Vamos a um único exemplo.
Alguém que sujeitou outra pessoa à violência do estupro e arrependido, desejando reparar-se perante a própria consciência, poderá redimir-se, por exemplo, como médico que atende gratuitamente mulheres carentes vítimas do câncer e assim em diversas outras situações. Quer dizer, sempre teremos que reparar o mal praticado, mas os caminhos são variados e sempre os teremos. Não há, pois, um determinismo. Poderemos consertar os erros, mas somente o amor liberta a consciência.
O leitor pesquisador encontrará ainda na observação colocada por Kardec que “Em falta de provas materiais sobre a exatidão dessa explicação, há que convir que ela é eminentemente racional e instrutiva; e como o Espírito que a deu é sempre distinguido pela gravidade e alto alcance de suas comunicações, consideramos esta como tendo todos os caracteres da probabilidade.(...)”
Notem o cuidado e apurado discernimento do Codificador. Por nossa vez, reflitamos sobre essa “onda” de violência determinada pelo livre-arbítrio de pessoas que se lançam desesperadas sobre a vida alheia; das dramáticas situações de vítimas aparentemente indefesas e coloquemos tudo isso sob o sábio critério da Providência Divina para refletirmos sobre os mecanismos da Justiça e da Bondade Divinas. Principalmente para não ficarmos a emitir opiniões descabidas de histórias reais cujos pequenos lances que enxergamos representam muito pouco diante do contexto completo que ignoramos.


Orson Carrara