O Excelso Canto
Aquele junho estava ardente mais do que nos anos anteriores.
O dia longo murchava lentamente, abafado, enquanto o Sol, semi-escondido além
dos picos altaneiros, incandescia as nuvens vaporosas, que o vento arrastava no
seu carro pulverizado de púrpura e ouro.
A montanha, de suave aclive, terminava em largo platô salpicado de árvores de
pequeno porte, que ofereciam, no entanto, abrigo e agasalho.
Desde cedo a multidão afluíra para ali, ansiosa, como atraída por fascinante
expectativa. Eram galileus da região em redor; pescadores, agricultores, gente
simples e sofredora, sobrecarregada e aflita. Eram judeus chegados dalém Jordão,
de Jerusalém, estrangeiros da Decápolis. Misturavam-se as vozes nos dialetos
regionais e uniam-se todos na mesma imensa curiosidade feita de expectação e
desejo.
Esmagada por poderosos, experimentava invariavelmente o desprezo da jactância e
da presunção.
Amavam-se aquelas criaturas na sua dor e necessidade; interdependiam-se.
Aquele Rabi, que os alentava, era o Rei aguardado há séculos, carinhosamente
esperado, que os libertaria do opróbrio e da servidão. . .
Ouviram-nO e O viram mais de uma vez, e constataram que jamais alguém fizera o
que Ele fazia ou falara como Ele falava.
Acorreram de toda parte: das redondezas do lago e dos campos, das cidades
distantes e das aldeias para ouvi-lO.
No ar pairava algo especial.
O azul doirado dos céus confraternizava com o verde queimado da terra, e a brisa
cariciosa chegava do mar, das bandas e contrafortes do Esdreion, trazendo o
acre-doce odor do solo crestado.
A montanha, em sua grandeza especial, é também um símbolo: o Filho do Homem que
desce aos homens vencendo as dificuldades do mergulho no abismo e do Homem que
sobe, conduzindo os homens por sobre escarpas lacerantes até o seio de Deus.
A montanha também é destaque maravilhoso na paisagem.
Galgar, subir a montanha pode significar vencer os óbices que perturbam o avanço
na jornada evolutiva. Descer, deixar o monte, é não considerar o empecilho e
refazer o caminho, alongar as mãos em direção dos que ficaram tolhidos na
retaguarda. . .
É muito áspera a descida aos homens para erguê-los a Deus.
Perder-se entre as querelas humanas para encontrar os Espíritos em perturbação
na noite das necessidades aparentes e resplandecer em madrugada sublime,
guiando-os por sobre os escombros da véspera, a fim de subirem até o planalto
onde brilha, permanente, o sol do claro e demorado Dia. . .
Descer sem decair.
Os homens suscitam obstáculos onde existem opiniões e levantam serros onde estão
convenções.
Esquecer-se e vir até os que se debatem nas questiúnculas, que vitalizam com
desconcerto emocional e sofreguidão.
Dar-se, integrar-se de tal modo que seja comum a todos, mas a nenhum igual.
Este o díptico: subir, descer.
Subir sem abandonar a baixada e descer sem esquecer os Cimos.
A montanha, era uma montanha qualquer. . .
E o poema que ali seria apresentado jamais foi ouvido, nunca mais será ouvido em
qualquer época, equivalente. . .
O Evangelista Mateus assevera: "E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte. .
.", enquanto Lucas informa: "E descendo com eles parou num lugar plano. . . "
Subir ou descer! Não importa.
A verdade, porém, é no plano do aclive ele se deteve e, de pé Vestiu-se de
poente.
Auréola refulgente, incendiou-lhe os cabelos que a leve brisa desnastrava,
esfogueados.
As vestes abrasadas e a ansiedade do mundo em volta. Na magote homens, mulheres
e crianças que levariam no cérebro e no coração a Mensagem, o Poema divisor das
realidades diferentes.
A multidão era a sua paixão, a sua vida. Amá-la e atendê-la, o seu fanal.
Sentindo a multidão submissa, magnetizada, esquecida de si mesma, numa sublime
comunhão em que extravasava toda a vida. Ele "abrindo a sua boca, os ensinava,
dizendo:
"- Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles ;é o Reino dos Céus!"
Os pobres, todos os conheciam. Eram maltrapilhos, malcheirosos, doentes.
Distendiam a mão que a miséria estiola.
Eram pobres; no entanto, quantos deles portavam os tesouros da riqueza do
espírito! Espírito rico de revolta, possuidor de paixões, dono de vasto cabedal
de angústia e mágoa. . .
Quem seria os "pobres de espírito"?
O vento perpassa em leve cantilena pela multidão pensante, a raciocinar, no
silêncio que se fez espontâneo, na pausa que, natural, se alonga. . .
Os ricos possuem moedas e títulos, propriedades e espíritos ricos de ambições,
de orgulho, de misoneísmo.
Os "pobres de espírito" são os livres de posses e ambições. Amantes da
liberdade, pugnadores dos direitos alheios, idealistas, cultores da verdade,
preparados para a verdade.
Sem peias atadas à retaguarda, sem ímãs atraentes à frente.
Semelhantes aos simples, desataviados e às crianças.
Inteiramente livres.
Candidatos ao Reino dos Céus e súditos dele, desde já.
Inocentes porque venceram com o tributo das lágrimas e o patrimônio dos suores.
Ressarcidos o débito, lavadas as mazelas, puros, portanto, sem a vacuidade do
"eu", predispostos à autodeliberação, à auto-sublimação.
Livres dos resíduos do mundo, não consumidos, não afligentes. Com todos, ao lado
de todos, sem ninguém, não amarrados aos outros, às convenções dos outros.
"Pobres de espírito!"
Amélia Rodrigues