Os Filhos do Grande Rei
O VELHO CIPIÃO
Quando a criançada pediu ao velho Cipião lhe falasse do amor que Jesus dedicava
aos meninos, o ancião de cabelos nevados contemplou longamente o céu, como quem
procurava recordações distantes, e informou:
- Oh! sim! O Cristo, Nosso Senhor, amava os pequeninos com todo o coração e
costumava acolhê-los no próprio regaço...
A observação inicial do velhinho realizara o milagre do silêncio. Todas as
crianças aguçaram ouvidos, atentas. Até os meninos maiores, que estimavam a
brincadeira barulhenta, aproximaram-se dele, respeitosos, à escuta.
Satisfeito com a atenção geral, o narrador fez uma pausa comprida, sorriu e
continuou:
- Os apóstolos, de quando em quando, repreendiam petizada, mas o Mestre chamava
novamente os pequenos, acariciando-os, cheio de amor...
Nesse ponto, Dolores, a menorzinha do grupo, interrompeu a narrativa,
perguntando:
- Vovô Cipião, Jesus contava histórias aos meninos?
- Oh! Como não! – exclamou o bondoso velho. – Contava muitas...
- O senhor sabe alguma, vovô? – perguntou a pequenina curiosa.
Cipião, trêmulo, amparou-se no antigo cajado para melhor acomodar-se sob a
copada árvore da praça grande, ergueu de novo os lhos embaciados para o céu
muito azul da tarde brilhante, e respondeu:
- Sim, eu sei uma história que o Mestre contou aos meninos galileus...
- Conte! conte!...
O INÍCIO DA HISTÓRIA
A SOLICITAÇÃO vinha de todos os lados. Dolores achava-se tão ansiosa que se
acercou ainda mais, debruçando-se nos joelhos do velho Cipião.
O ancião, como todas as pessoas bem educadas, gostava das crianças de boas
maneiras e, reconhecendo o respeitoso interesse de todas, começou, sem embaraço,
ante a curiosidade geral:
- Prestem muita atenção!
A pequenada fez absoluto silêncio.
E o velhinho prosseguiu:
- O rei de todos os reis, bom e altíssimo Senhor, que possui vastos impérios
resplandecentes e a cuja autoridade se submetem todos os seres e coisas da
Criação, reparou que alguns dos seus filhos, meninos e meninas, necessitavam de
maior sabedoria, a fim de entrarem na posse da herança, constituída de infinitas
riquezas que lhes reservava. Os jovens tinham a inteligência muito verde ainda
e, por isso, eram ignorantes, indecisos... Fazia-se necessário, criar trabalho
através do qual os herdeiros felizes pudessem adquirir, não somente o amor para
com os semelhantes, mas também a ciência do Universo. O rei magnânimo e sábio,
ocupado em governar os extensos domínios do seu reino sem fim, não podia
mantê-los ao pé de si, uma vez que não desejava conservá-los como bonequinhos de
enfeite e, sim, como filhos fortes e bem orientados, trabalhadores e leais. Para
isso, os jovens precisavam de elevação própria e experiência da vida.
OUVINDO OS CONSELHEIROS
O NARRADOR fez pequenino intervalo e prosseguiu:
- Foi então que o poderoso Senhor convocou a presença dos filhos mais velhos,
sábios e bons, transformados em cooperadores e conselheiros de suas imensas
obras, a fim de ouvi-los sobre o futuro destino dos principezinhos ignorantes.
Exposto o assunto pelo soberano, os colaboradores começaram a opinar com
alegria:
- Não seria interessante criar um paraíso repleto de belezas absolutas? – disse
um deles.
Outro, porém, considerou:
- Não seria melhor um jardim cheio de flores, onde os jovens crescessem
tranqüilamente?
- Não poderíamos construir um templo coroado de eterna luz e de eterna harmonia
para abrigá-los? – perguntou ainda outro.
Iniciou-se extenso movimento de comentários, em torno das três opiniões
recebidas, e, quando os conselheiros levaram os pareceres ao grande rei, ele
esclareceu paternalmente:
- Aproveitaremos as três sugestões a um só tempo. Considerando que os príncipes
necessitam crescer, adquirindo valor próprio, edificaremos para eles uma grande
escola, que tenha a beleza dum paraíso, a delicadeza dum jardim e a sublimidade
dum templo, na qual encontrem recursos para o aprendizado e para o trabalho,
conquistando, por si mesmos, a sabedoria e a glorificação.
Os conselheiros sentiram-se muito felizes com a determinação e retiraram-se
satisfeitos.
A GRANDE ESCOLA
O REI ordenou a edificação de um mundo maravilhoso, num dos recantos do seu
império infinito. Seria esse mundo a grande escola dos pequenos príncipes
necessitados de educação.
Turmas enormes de obreiros atacaram os serviços.
Atendendo aos seus conselheiros esclarecidos e benevolentes, o soberano
autorizou a organização de mares e florestas, cheios de beleza e perfume, à
maneira de lagos divinos e jardins de perpétua formosura; recomendou que muitas
luzes gloriosas dos seus altos domínios permanecessem à mostra e que doces
harmonias vibrassem nos ares, de modo que os filhos se sentissem, na escola, tão
jubilosos e felizes como se vivessem num paraíso ou num templo.
Entretanto, para que os jovens não se esquecessem da necessidade de serviço e
estudo, mandou que muitas flores tivessem espinhos; que a tempestade retivesse
permissão para lavar de vez em quando, os horizontes azuis; que as águas nem
sempre se mantivessem tranqüilas. E para que os filhos nunca perdessem de vista
o caminho de retorno ao seu augusto amor, deu-lhes a luz dos olhos e do
raciocínio como inseparável companheira de realização.
Foi então criada a enorme escola, sob as vistas do grande rei, com a cooperação
ativa de inúmeros servidores. Organizadas, porém, as bases da volumosa
edificação, era necessário examinar os pormenores do trabalho, de acordo com as
necessidades do aprendizado.
NO INTERVALO
NESSE ponto da história, o narrador começou a tossir.
Cipião parecia tão cansado!... Os meninos sabiam que ele fazia longas
peregrinações. O velhinho, porém, era forte e, embora os achaques da idade,
nunca perdia o sorriso bom.
Observando que a interrupção se tornava mais longa, Ninita, uma das meninas
maiores do grupo, aproximou-se dele e perguntou, carinhosa:
- O senhor tem fome, vovô?
- Não, minha filha – disse o velho, confortado.
- Tem sede?
- Também não.
Os meninos, contudo, não mostravam maneiras tão distintas.
Um deles ergueu a voz e indagou, menos respeitoso:
- E essa escola existiu de fato?
- Como não? – volveu o narrador, benevolente – e ainda existe.
Diante da afirmação do velhinho, o interlocutor interrogou, deslumbrado:
- Poderemos vê-la?
- Perfeitamente – respondeu Cipião, sem titubear.
A criançada ia entrar em ruidosos comentários. Acendera-se forte curiosidade em
todos os rostos. As perguntas choveram de todos os lados, mas Cipião,
sorridente, observou:
- Deixem-me continuar.
Calaram-se as crianças, de súbito, e, de novo, reinou o silêncio.
PROVIDÊNCIAS DO REI
ENTÃO, o bondoso Cipião pigarreou mais uma vez e prosseguiu:
- Depois de organizados os mares e florestas, o Grande Senhor passou a tratar de
vários departamentos da escola. A situação dos principezinhos preocupava-lhe o
amor paternal e, valendo-se dos conselheiros e trabalhadores de seu reino,
procurou garantir-lhes a saúde e a alegria, o trabalho e o estudo. Construída a
escola, em pleno céu, mandou o soberano que, ao lado dos mares enormes e das
matas imensas, fossem colocadas montanhas e vales, longas planícies e picos
prodigiosos, repletos de riqueza e verdura.
Para que não faltasse claridade viva ao educandário, ordenou o rei que toda a
construção se efetuasse sob vigoroso foco de luz criadora, cujos raios fizessem
o dia, proporcionando vida e calor em abundância; e, para que a noite não
escurecesse a escola, totalmente, recomendou a instalação de lâmpada suave e
enorme, reconfortando a região com abençoado luar.
O soberano, cheio de sabedoria e carinho, em todas as providências sempre
revelou a maior atenção, relativamente ao problema da luz, para que os seus
filhos, ainda jovens, nunca se mergulhassem nas trevas do entendimento.
AUXILIARES
OBSERVANDO que os serviços básicos da escola estavam prontos, o grande senhor
chamou os conselheiros e lhes falou com bondade:
- Desejo confiar aos meus filhos alguns vegetais preciosos dos meus celeiros, a
fim de que suavizem a luta do ganha-pão nos dias do futuro.
E, em breve, as árvores frutíferas eram cultivadas nos grandes patrimônios do
educandário, junto dos legumes tenros e substanciosos. Troncos robustos
estenderam traços verdes, carregados de flores e frutos; arbustos delicados
derramaram grãos preciosos, e ervas frágeis ofereceram saborosas folhas. Para
que produzissem harmoniosamente, determinou o rei que as chuvas fossem divididas
e controladas.
Quando se misturavam, viçosos e triunfantes, os jardins e os pomares, o soberano
convocou novamente os cooperadores e disse-lhes:
- Pretendo entregar aos meus filhinhos auxiliares amigos que os ajudem,
gratuitamente, no aprendizado.
Para isso, confiaremos à escola alguns seres ainda fracos de inteligência, que
possam auxiliá-los, recebendo deles, ao mesmo tempo, carinho e educação.
Desde essa hora, numerosos animais foram trazidos ao educandário maravilhoso.
Aves formosas e amigas povoaram os ares, louvando o Grande Senhor e purificando
a atmosfera. Bois, cães, muares e ovelhas, ao lado de muitas outras criaturas
úteis, passaram a cooperar, em favor dos pequenos príncipes, para que as lutas
lhes fossem menos ásperas.
Esboçando largo sorriso de contentamento, o velhinho calou-se e passeou o olhar
pelo bando álacre...
COMUNICAÇÕES
DEPOIS de pequena pausa de repouso, ante os meninos atentos, Cipião continuou:
- A escola era um verdadeiro paraíso, repleta de flores e luzes, harmonias e
encantos naturais, quando o Soberano, sempre interessado no bem-estar dos
filhos, chamou os colaboradores e explicou-lhes:
- Em meu cuidado paternal, receio que os meus herdeiros menores cresçam
absolutamente isolados uns dos outros. Se progredirem separados, em definitivo,
na conquista da Ciência, talvez inventem conflitos e choques sem razão de ser.
Edifiquemos para eles todas as comunicações possíveis, todos os recursos de
intercâmbio, para que cultivem a fraternidade e o entendimento justo.
Os colaboradores cumpriram-lhe as ordens, imediatamente.
Orientando extensas turmas de trabalhadores, dirigiram-se para as montanhas, em
cujo interior havia volumoso depósito de água fresca, e organizaram fontes
numerosas, através de pequenas aberturas, formando assim rios maiores e menores,
facilmente transformáveis em valiosas vias de comunicação. Além disso, estradas
enormes foram rasgadas, naturalmente, ao longo de colinas e planícies, para que
os príncipes não encontrassem motivo de insulamento prejudicial, aprendendo, com
todas as instalações indispensáveis ao seu desenvolvimento, os princípios de
solidariedade fraterna.
O LAR
NÃO contente em aplainar as dificuldades do início, tornando os príncipes e as
princesinhas tão ricos de dádivas, o Grande Senhor fez mais.
Sabendo que os filhos se caracterizavam por gostos diferentes, o Amoroso Pai
concedeu-lhes a bênção do lar, facilitando-lhes os trabalhos e realizações.
Certas meninas apreciavam as flores, acima de tudo; outras encontravam nos
livros a maior alegria, outras ainda se sentiam mais felizes no serviço manual.
Acontecia o mesmo com os rapazinhos. Alguns davam tudo para que os deixassem nos
trabalhos de agricultura, outros preferiam a arte ou a ciência. Observando nessa
atividade um estímulo vigoroso ao progresso geral, o Rei Poderoso e Bom
determinou aos colaboradores a edificação do santuário doméstico, de modo que os
filhinhos se reunissem, segundo as afinidades pessoais.
Foi então organizado o lar nos imensos territórios da grande escola, como
verdadeiro ninho de vida e amor. Esse ninho possuía lugares apropriados para as
refeições e palestras, para o trabalho e descanso. Findas as ocupações e estudos
do dia, os jovens poderiam reunir-se aí, à noite, como num templo de carinho e
compreensão fraternal, de acordo com as preferências sentimentais de cada grupo,
trocando idéias e experiências úteis e cultivando a paz e a oração, a caminho da
maioridade.
Desde essa ordem paterna, foi construído o lar, na abençoada escola destinada ao
entendimento e aos júbilos da família.
O UNIFORME
O ANCIÃO fez mais longa pausa diante dos meninos surpreendidos.
Aproveitando o silêncio, a pequena Dolores indagou timidamente:
- Vovô Cipião, e Jesus contou se os príncipes foram para a escola?
- Sim – respondeu o velhinho sorridente -, todos eles obedeceram às
determinações paternais.
- Como? – tornou a perguntar a pequena curiosa.
- Muito zeloso da fraternidade que deveria reinar entre os filhos, o Devotado
Pai recomendou o uso de um só uniforme para o educandário, concedendo-o, com
grande riqueza, aos príncipes queridos. Todos, sem exceção, deveriam envergá-lo
nos estudos e experiências, embora se diferenciassem, entre si, nas tendências,
pensamentos e aspirações.
Fazendo gracioso gesto com as mãos enrugadas, o ancião prosseguiu:
- Os príncipes chegaram muito pequeninos à escola, porque a confecção do
vestuário concedido pelo Rei, para as lições e estudos de cada dia,
subordinar-se-ia a certas leis do educandário maravilhoso, edificado em pleno
céu... Meninos e meninas chegaram em bando, através dos vales e dos montes, para
o curso de crescimento e perfeição, todos vestindo o mesmo uniforme, igual na
formação e nos característicos, apenas variando quanto à cor, pois os uniformes
eram brancos, avermelhados, bronzeados, amarelos, pardos e negros. A diversidade
das cores, contudo, não implicava separação, porque os príncipes eram filhos e
herdeiros do mesmo Senhor.
PRIMEIROS TEMPOS
OS primeiros tempos de recepção dos príncipes assinalaram-se por grandes e
dilatados trabalhos de toda ordem.
Muitos não se adaptavam aos uniformes e voltavam da escola, medrosos e
envergonhados. Outros acovardavam-se diante da extensão das águas e das
florestas e não se animavam a atacar o trabalho, abandonando o vestuário,
precipitadamente. Outros, ainda, declaravam-se doentes, depois dos primeiros
dias de lições e serviços.
O Poderoso Rei, todavia, não se zangou, nem se aborreceu. Cuidando dos pequenos
herdeiros com extrema ternura, determinou que os abnegados cooperadores de sua
obra solucionassem as dificuldades do educandário. E os mensageiros do Grande
Senhor vieram em número elevado, a fim de estudar os problemas e resolvê-los.
Com enorme dedicação, melhoraram a atmosfera, para que o ar fosse mais agradável
aos meninos; organizaram mais perfeito escoamento para as águas; ajudaram os
principezinhos a descobrir os frutos mais doces e saborosos; ensinaram-lhes a
trazer o uniforme bem limpo; deram-lhes lições valiosas no trato com os animais;
prestaram-lhes esclarecimentos sobre o fogo e a água; aproximaram-nos uns dos
outros, para que aprendessem a cultivar a fraternidade e a proteção mútua;
puseram-lhes a prece no coração e nos lábios, e auxiliaram-nos a olhar o alto,
cheios de confiança no Poder do Pai Amoroso e Supremo Governador.
Desde então, com o socorro eficiente dos emissários generosos, os pequenos
herdeiros passaram a desenvolver-se com tranqüilidade e segurança.
DEPOIS DE CRESCIDOS
QUANDO chegou a este ponto da história, Cipião mostrou indisfarçável tristeza
nos olhos e parou de falar por alguns minutos, como se estivesse lembrando
alguma coisa muito importante.
Nenhum dos ouvintes lhe interrompeu os pensamentos.
Finda a grande pausa, continuou:
- Mas os príncipes, para quem o Poderoso Rei criou tão formoso reino escolar,
depois de crescidos sentiram-se seguros em seus uniformes e em seus lares e,
desviando a inteligência, esqueceram o Pai Compassivo e criaram perigosos
monstros, dentro de si mesmos, com os quais passaram a se aconselhar. Os
colaboradores diretos do Grande Rei continuaram ensinando o bem e a verdade, a
paz e o equilíbrio. Entretanto, os aprendizes não quiseram ouvi-los por mais
tempo. Os monstros que eles próprios haviam criado envenenaram-lhes o coração,
dizendo-lhes que a escola era absoluta propriedade deles, que deveriam dominar
em torno de suas residências como verdadeiros e únicos senhores.
Em breve, os filhos do Grande Rei, esquecendo os deveres que lhes cabiam
desempenhar, começaram a humilhar, derrubar e perseguir. Destruíram árvores
veneráveis sem plantar outras que as substituíssem; organizaram caçadas aos
animais pacíficos, matando-os sem necessidade; aprisionaram os pássaros e
passaram a fazer o que é mais doloroso – combateram-se uns aos outros, em
guerras de sangue, deixando misérias e ruínas atrás de seus passos. Para
adquirirem supremacia e poder, honras e autoridade, assassinaram mulheres e
crianças, velhos e doentes incapazes de fazer mal.
DÁDIVAS MENOSPREZADAS
O GRANDE rei, a princípio, não levou em consideração tamanhos desatinos.
- “Os filhos eram ainda muito jovens” – afirmava ele aos cooperadores fiéis.
E, interessado em auxiliar os pequenos príncipes com todos os recursos ao seu
alcance, mandou que os mensageiros lhes trouxessem embarcações para incentivarem
as relações amigas uns com os outros; maquinaria com que revolvessem o solo,
facilitando os serviços da lavoura; carros para auxiliá-los nos transportes e
teares para a confecção de tecidos diversos. Preocupado, ainda, em tornar a vida
mais agradável na grande escola, o Pai Amoroso determinou aos colaboradores que
ensinassem aos príncipes o alfabeto com que pudessem fixar os pensamentos, a
arte para embelezarem o santuário doméstico e a indústria e o comércio a fim de
desenvolverem a fraternidade e o espírito e serviço.
Os filhos do Grande Rei, todavia, longe de se aproveitarem de tantos bens para
serem mais sábios e compassivos, utilizaram os recursos divinos par fomentar a
discórdia e a destruição, chegando alguns deles a sustentar o secreto desejo de
serem mais poderosos que o próprio Pai, aniquilando-o, talvez.
PREOCUPAÇÕES DO PAI
O SOBERANO, embora fosse tão ofendido, não se revoltou nem se magoou, porque
todo pai tem reservas infinitas de amor.
Observando, porém, que os filhos lhe desobedeciam às ordens, perturbando a
harmonia da escola e destruindo os próprios bens, convocou nova reunião dos
colaboradores, de modo a ouvi-los sobre as providências que lhe competia tomar.
Reconhecendo as justas preocupações do Rei, os conselheiros passaram ao
movimento de opinião.
Um deles considerou que seria melhor destruir o educandário e começar outra
experiência educativa.
Outro consultou o Soberano quanto à possibilidade da aplicação de pesados
castigos aos príncipes rebeldes e ingratos.
O Poderoso Senhor, no entanto, dedicava muito carinho à escola e muito amor aos
filhos queridos.
Ambas as propostas estavam em estudo, quando outro cooperador perguntou se não
seria mais razoável tratar a questão pela justiça. Não seria justo tentar
medidas de muito carinho, porque os príncipes se mostravam endurecidos, mas
também não convinha corrigi-los com excessivo rigor, em vista de serem jovens
com reduzida experiência da vida.
O Rei Sábio e Generoso considerou a idéia excelente e, com aprovação geral,
deliberou aplicá-la.
Finda a reunião, enviou dois juízes para acompanharem permanentemente os
príncipes; o primeiro encarregar-se-ia de fazer as retificações possíveis e o
segundo estaria incumbido de reconduzi-los à presença paternal, para julgamento
necessário, em momento oportuno.
O PRIMEIRO JUIZ
OBEDECENDO às ordens do Pai Amoroso e Justo, o primeiro juiz aproximou-se dos
príncipes, efetuando as corrigendas possíveis.
Os descuidados herdeiros do Grande Rei não lhe observaram a chegada de modo
direto, mas sentiram-lhe a presença nas atividades comuns. Retificando os
caminhos dos aprendizes, o primeiro juiz era obrigado a fazer muitas coisas
desagradáveis, como o pedreiro amigo e cuidadoso que, para tornar a pedra útil,
é forçado, muitas vezes, a espancá-la com o martelo.
Numerosos príncipes e princesas começaram então a reconhecer que andavam em
caminho errado. Muitos concluíam que fazer inimigos não representava prazer;
que, afinal de contas, havia um poder muito mais alto que o deles, governando o
Universo. Grande parte modificou a vida.
Em verdade não viam com os olhos do corpo o emissário que o Soberano lhes
mandara. Entrementes, o primeiro juiz trabalhava sem cessar, acordando-lhes a
consciência adormecida. Obrigou-os a meditar nas origens divinas da Escola;
estimulou-lhes a curiosidade, a fim de reconhecerem que se encontravam de
passagem no educandário maravilhoso, e fê-los olhar a luz celeste em que se
banham os impérios resplandecentes do Poderoso Senhor, para que se sentissem
menos vaidosos e mais aplicados ao estudo e ao trabalho cotidiano.
Desde então, os príncipes encontraram no primeiro juiz um educador de primeira
ordem e um companheiro admirável para a jornada de retornos às leis do Amoroso
Pai.
O SEGUNDO JUIZ
O TRABALHO do segundo juiz era mais difícil, mais doloroso. A missão do primeiro
julgador perdurava até ao instante em que os príncipes eram obrigados a deixar o
uniforme envelhecido ou roto. Aí então começava o serviço do segundo. Ele devia
mostrar aos filhos ingratos o erro em que se haviam comprometido, com toda a
franqueza, depois de encerrada a oportunidade de serviço e estudo.
Os herdeiros do Grande Rei, todavia, quando foram entregues ao segundo julgador,
a fim de receberem a verdade e a luz para tornarem aos braços paternos, estavam
com os olhos cheios de treva e as mãos tintas de sangue, os pés revestidos de
lodo e o coração cercado de espinhos, mormente todos aqueles que haviam fugido
ao auxílio do primeiro juiz retificador. Estavam cegos e tontos. Não sabiam que
rumo escolher. A consciência parecia-lhes uma casa incendiada. Os príncipes tão
ricos e tão desventurados, agora só sabiam chorar.
O segundo juiz revelou-lhes o abismo em que se haviam precipitado.
Dedicado e bom, como sempre o Poderoso Pai veio ver os filhos sofredores;
entretanto, os príncipes não o viram, nem lhe ouviram a voz pelo estado
lastimável em que se achavam.
Compadecendo-se dos jovens, o Rei Sábio e Bondoso desculpou-os e, chamando os
conselheiros, determinou que os filhos amados voltassem à grande escola,
guardados de perto pelos dois juízes, recomeçando o aprendizado da sabedoria e
do amor para a redenção.
De novo, o velho narrador fez longa pausa, para concluir:
- Desde então, os aprendizes regressam ao educandário, utilizando os mesmos
uniformes para adquirirem a virtude e a elevação.
A ESCOLA SUBLIME
CIPIÃO interrompeu-se, como se houvesse terminado a narrativa. Contemplou o céu
azul onde vagueavam avermelhadas nuvens do crepúsculo. O vento leve da tarde
acariciava-lhe os cabelos brancos...
As crianças conservaram-se em profundo silêncio, aguardando-lhe os comentários.
Decorridos alguns instantes, o velhinho amparou-se no cajado, buscando talvez
energias novas, e informou e tom diferente:
- Esta, meus bons amiguinhos, é a história que eu soube haver Jesus contado, um
dia, aos pequenos de Cafarnaum. Em torno dele, acotovelam-se filhos dos mais
diversos lares. Eram as crianças descendentes de judeus e romanos, gregos e
etíopes que o escutavam. Meninos que vinham de todos os credos e de todas as
casas, sequiosos de seu carinho e ensinamento.
E, após nova pausa, fixou nos ouvintes o olhar doce e calmo, prosseguindo:
- Fui informado, ainda, de que Jesus, atendendo às solicitações das crianças que
Lhe ouviam a narrativa, esclareceu que a grande escola é a Terra, o mundo
maravilhoso em que vivemos, cheia de flores perfumadas e de luminosos
horizontes, e que Ele, nosso Divino Mestre, vinha ao encontro dos príncipes, em
nome do Poderoso Pai, a fim de ajudar a todos na restauração da concórdia e do
trabalho, da alegria e do entendimento.
OS PRÍNCIPES
O ANCIÃO ia continuar, quando o pequeno João Veloso, que seguira toda a
história, atentamente, ansioso por explicações, interrogou com intensa
curiosidade:
- Vovô, quem são os príncipes, filhos do Grande Rei?
- São os homens – respondeu o ancião, sem hesitar -, os homens e as mulheres do
mundo, donos de sublimes riquezas que não sabem aproveitar.
Cipião pensou um momento e continuou:
- Para sermos mais claros, devemos proclamar que os príncipes somos todos nós,
que viemos a esta grande e abençoada escola, que é a Terra, obedecendo às ordens
da Providência Divina... Aqui encontramos a bênção do dia e da noite, do
trabalho e do repouso, com mil oportunidades de conquistar a sabedoria e a luz,
a elevação e a santidade... Desde o primeiro dia de luta, recebemos a carinhosa
assistência de nossos pais. Crescemos entre dádivas sublimes da Natureza, com
todas as facilidades que o Poderoso Senhor nos concedeu. Apesar disso, porém,
embora a beleza e a glória do educandário a que fomos conduzidos pela Bondade
Celestial, por algum tempo, a fim de que possamos adquirir conhecimento e
virtude, perdemos quase todo o tempo na preguiça e, orgulhosos, acreditamos-nos
senhores da Criação... Quase sempre começamos em pequeninos a fugir de nossos
deveres, a desprezar o trabalho, a esquecer os estudos que nos tornarão mais
sábios e melhores, a oprimir a Natureza, a olvidar os direitos do próximo e, por
isso, esbarramos na cegueira da descrença, nas feridas do mal, no frio do
desânimo ou nas destruições da guerra...
ESCLARECIMENTOS DE CIPIÃO
O BONDOSO velhinho parecia haver terminado, mas Dolores, a pequena estudiosa,
cravou nele os olhinhos brilhantes, segurou-lhe nervosamente as mãos, e tornou a
perguntar:
- Vovô, não é possível explicar tudo? Jesus não teria falado mais alguma coisa?
quais eram os monstros que enganaram os príncipes? quais são os juízes que
vieram da parte do Grande Senhor?
O narrador sorriu, visivelmente satisfeito com a interrogação, e comentou:
- Não cheguei a saber se o Divino Mestre prestou esclarecimentos finais às
criancinhas de Cafarnaum; mas, de acordo com informações que recebi, farei a
interpretação para vocês.
E, com voz pausada e firme, explicou:
- O Rei de todos os reis, bom e altíssimo Senhor, é Deus, Nosso Pai de Infinita
Bondade.
Os impérios resplandecentes são os sóis numerosos e os numerosos mundos que se
equilibram na imensidade, dos quais podemos fazer ligeira idéia, contemplando o
firmamento iluminado.
Os príncipes, necessitados de sabedoria e amor, são os homens e as mulheres da
Terra, herdeiros divinos da Criação.
Os conselheiros e cooperadores do Poderoso Senhor são os Espíritos Sábios e
Benevolentes que nos auxiliam, em nome d’Ele, em todos os caminhos da vida
humana.
A bendita escola construída para a educação dos príncipes é a Terra em que
habitamos.
O vigoroso foco de luz, junto o qual foi edificado o nosso educandário, é o Sol
que nos sustenta a vida física.
A lâmpada suave e enorme é a Lua.
As árvores e as ervas, as flores e os frutos, bem como os animais de variadas
espécies, são os auxiliares dos herdeiros felizes.
Os rios e estradas constituem as comunicações que o Pai nos concedeu a fim de
aproximar-nos uns dos outros.
O lar confortável é a casa acolhedora que nos abriga no mundo.
O uniforme ou roupa dos príncipes é o corpo carnal que varia de cor na Europa,
na América, na Ásia e na África.
Os conselheiros monstruosos que os aprendizes criaram para si mesmos chamam-se
orgulho e vaidade, egoísmo e ambição, ciúme e discórdia.
A rebeldia comum dos herdeiros, na escola terrestre, revela-se no propósito de
dominar os semelhantes, através da maldade e da guerra, em que todos os poderes
da inteligência são utilizados.
O primeiro juiz por Deus é o sofrimento, que procura espertar a consciência
adormecida; o segundo é a morte, que reconduz a alma às realidades do Grande
Senhor.
A cegueira, que impediu o retorno dos filhos aos braços amorosos do Soberano
Pai, é a treva do mal que se apodera do homem, destruindo-lhe a visão e o
entendimento.
O regresso aos uniformes tão caridosamente autorizado pelo Rei Poderoso e Bom, a
fim de que os príncipes recomecem o aprendizado, é a lei divina da reencarnação,
com a qual aprendemos, em contacto com o sofrimento e com a morte, os sagrados
princípios da fraternidade, da justiça, do amor, da concórdia, da paz e do
perdão.
TERMINANDO A HISTÓRIA
O VELHINHO calou-se, contemplando as crianças, que se mostravam risonhas e
satisfeitas. A história fazia-lhes sentir a grandeza da vida e apontava-lhes o
glorioso porvir.
O Sol já se despedira do vasto horizonte azul e o vento frio começava a soprar
fortemente.
Cipião amparou-se no cajado velho, levantou-se devagarinho e, olhando a
criançada com um sorriso bom, terminou a narrativa, aconselhando:
- Tenhamos todos muito cuidado em evitar o mal e muita alegria em praticar o
bem... Todos nós, meus filhos somos príncipes necessitados de educação na escola
da Terra. Alguns, como eu, vestem uniforme mais velho, mas vocês estão começando
as lições, vestindo roupa nova, forte e bonita...
Todos os meninos sorriram contentes e o ancião concluiu:
- Espero que vocês todos, de hoje em diante, saibam viver neste mundo como
verdadeiros filhinhos de Deus.
Veneranda