Em Livros Espíritas
— Quero dois mil cruzeiros em livros espíritas!
Era uma jovem senhora no balcão, a fazer o pedido.
Mas o gerente da casa solicitou:
— Faça, por obséquio, a relação.
— Não há necessidade — afirmou a dama —, escolha os melhores e mande ao Dr.
Anísio Fortes.
E forneceu o endereço exato.
O chefe do serviço, porém, coçou a cabeça, encabulado.
Aquela moça sorridente a fazer uma compra significativa, assim desacompanhada...
A indicação do nome de um médico que ele sabia materialista, embora
respeitável...
Não desejava criar um caso entre a instituição que a livraria representava e o
clínico referido.
— A senhora está credenciada por ele para fazer a compra?
A cliente sorriu, compreendendo a dificuldade, e, rogando ao diretor de vendas
um minuto de atenção, explicou:
— Bem, o senhor não me conhece e devo esclarecer a questão, em meu próprio
benefício.
Esboçou na face a expressão silenciosa de quem ouve a própria consciência e
continuou:
— Narrando os próprios erros, atendemos à profilaxia necessária contra as nossas
imperfeições. Imagine o senhor que, há precisamente quatro anos, cometi falta
grave. Recém-casada, vi meu esposo adoecer sem recursos. Não tendo o apoio de
qualquer parente que me pudesse prestar auxílio, aceitei a única oportunidade
que me apresentavam, a de zelar pelo asseio no gabinete do Dr. Fortes. Encerar,
porém, duas salas e limpar instrumentos e vidros, móveis e vasos asseguravam-me
ninharia... O ordenado dava mal para alguns sanduíches. Minha luta crescia.
Penhorei o que pude. Mesmo assim, os débitos aumentavam. Apareceu, entretanto, a
grande oportunidade. Amigos de meu esposo lembraram-me o nome numa prova de
habilitação para atendente. Poderia ingressar, assim, no Serviço Público.
Contudo, a preparação de papéis requeria dinheiro. A aquisição de traje novo
requeria dinheiro. Vivia na expectativa inquietante, quando, de caminho para o
trabalho, encontrei precioso vaso quebrado, sob elegante janela. Fina porcelana
estilhaçada. E veio-me idéia estranha. Por que não aproveitar?
Juntei fragmento a fragmento, recompus a peça o quanto me foi possível, adquiri
papel fino, adequado a presentes e fiz pequenino volume de bela aparência.
Apressei o passo e cheguei mais cedo. Fiz todo o serviço que me competia e,
postando-me atrás da porta com o presente numa das mãos, esperei que o Dr.
Fortes viesse. Eu sabia que ele chegava de repente, varando a porta à feição de
vento tempestuoso. Aconteceu o que previa. O Dr. Fortes empurrou a porta de
vaivém com força, e zás!... O embrulho rolou no piso e os cacos com grande ruído
deram a impressão perfeita de que a preciosidade se perdera naquela hora. Meu
jogo fora certo. O bondoso amigo, cavalheiro corretíssimo, fitou-me
consternado...
Como a voz da interlocutora se fizera hesitante, o gerente indagou, interessado:
— E o resto?
— Ante as perguntas do médico, que se supunha responsável pelo desastre, menti
que se tratava de uma lembrança que meu marido e eu havíamos adquirido a custos
para ofertar a minha irmã, prestes a casar-se... O Dr. Fortes consultou os
remanescentes da peça e, homem muito experimentado, avaliou-a pelo justo valor.
“Não quero que a senhora tenha qualquer prejuízo” — disse, pesaroso. E, de
imediato, sacou do bolso dois mil cruzeiros, entregando-nos a título de
indenização, pedindo desculpas. Embora desconcertada, recebi o dinheiro e
utilizei-o nas providências que desejava. Concorri ao cargo e consegui nomeação
para trabalhar num instituto assistencial. Abandonei minhas antigas atividades.
Conquistei salário digno. Depois de algum tempo, buscando auxílio moral na
Doutrina Espírita em benefício de meu esposo, tornei-me espírita, igualmente, e
compreendi meu erro grave, percebendo que me fiz ladra, através do que podemos
chamar uma “falta perfeita”. Procurei, então, o Dr. Fortes e confessei-lhe o meu
gesto infeliz. Ele ouviu-me, com simpatia e respeito, mas não concordou com a
devolução do dinheiro. Abraçou-me, benevolente, e apenas pediu que eu lhe desse
um livro do nosso movimento, à guisa de amostra, desejando conhecer os
princípios que me revolviam, assim, o fundo da consciência...
O gerente da livraria, ao vê-la terminar a história, estendeu-lhe a mão,
cumprimentando-a e falou, comovido:
— Minha irmã, seu exemplo me obriga a pensar...
A dama pagou a importância fixada, e, quando voltou à livraria, três dias
depois, para recolher o certificado de que o médico havia recebido a encomenda,
encontrou o gerente, atarefado, preparando um fardo de livros.
— Está vendo? Disse ele à recém-chegada — hoje faço igualmente o meu pacote com
mil e duzentos cruzeiros, em livros da nossa Causa, para oferecer a um amigo...
— Como assim? — perguntou a visitante, evidentemente intrigada.
O gerente, contudo, apenas sorriu e falou, entre satisfeito e hesitante:
— Eu também tenho um caso...
Hilário Silva