O Tesouro Enterrado
I
César Luchini, jovem generoso, mas temperamental, assistia à reunião espírita,
junto dos pais, embora contrafeito.
Demétrio, o orientador desencarnado, falava, benevolente, em torno da educação.
- Meus filhos – dizia em determinado tópico do comentário evangélico -, é
preciso amparar a criança, armando-lhe o coração com valores morais.
Muita gente acredita que meninos devem andar à solta, como planta de mato
agreste. E toca a deixa-los na rua, plenamente à vontade. Entretanto, quando
quer couve na horta, dispõe-se a defendê-la e discipliná-la. Ninguém consegue
sustentar pequena horta ou jardim sem esforço. Se, no trato da Natureza, a vida
pede atenção, como entregar a criança a si mesma? O Espírito comparece no berço
com as qualidades felizes ou infelizes que cultivou no passado e, realmente, não
prescinde da vigilância e da instrução necessárias para o justo aproveitamento
na luta que recomeça. Sabendo, de nossa parte, que a maioria das criaturas torna
à reencarnação, em conseqüência dos próprios erros, é imperioso estender braço
forte aos pequeninos, a fim de que, desde cedo, se fortaleçam para o combate às
tentações que surgirão deles mesmos. As tendências inferiores são raízes muito
difíceis de extirpar. E, se relaxamos, voltam a produzir para o mal, em tempo
certo, qual acontece com os vegetais venenosos esquecidos na terra.
Demétrio terminou, pelo médium, encarecendo a gravidade do problema e
distribuindo renovadoras consolações.
Em casa, Dona Perpétua, a mãezinha de César, desejando fixar os ensinamentos na
memória do filho, comenta, entusiasmada, os merecimentos da alocução.
Enquanto saboreiam o chá, refere-se aos desajustes da infância, como que
provocando o moço à conversação.
Após ouvi-la, taciturno, durante muito tempo, César considera:
- Não vejo tanta importância no assunto. Respeito a idéia espírita de amparo à
criança, mas acredito que a educação deve ser livre. Contrariar um menino nas
inclinações naturais, será torcer-lhe o íntimo. Chego a admitir, que muito
quadro triste, na delinqüência de jovens, é simples fruto das estranhas
exigências de lares, em que pais ignorantes obrigam filhos a crescer com
desilusões e recalques...
- Meu filho – interveio Luchini, pai -, liberdade sem dever é sementeira de
injustiça e desordem...
César, contudo, rebatia:
- Estou noivo e, a breve tempo, terei minha própria casa. Se Deus confiar-me
algum filho, será livre, crescerá sem qualquer prejuízo ou superstição...
Diante do azedume que lhe transparecia da voz, calaram-se os genitores.
E, de vez em vez, quando o tema vinha à tona desse ou daquele entendimento
doméstico, o moço tornava à reação, rebelde e agastadiço.
II
Decorrido algum tempo, César estava casado, pai de família. Em quatro anos,
Cilene, a esposa, culta e caprichosa quanto ele mesmo, enriquecera-lhe o coração
com dois filhos.
Luis Paulo e Vera Linda cresciam mimados e sorridentes.
Como se o mundo lhes pertencesse, tinham tudo o que desejavam, ao alcance das
mãos.
Destruir brinquedos e utilidades parecia neles vocação das primeiras horas.
Eram em casa diabretes incorrigíveis.
Entretanto, que ninguém ralhasse, mesmo de longe.
Aos próprios avós, Cilene e César não regateavam advertências, nos instantes de
crise.
- Mãe – dizia o rapaz, desenvolto -, não interfira. Os meninos são livres. Não
quero constrangimento.
E a nora confirmava:
- César tem razão. Criança contrariada hoje é doente amanhã. Nossos filhos não
crescerão mentalmente desfigurados.
A vida avançou como sempre.
Quatro lustros passaram céleres.
César Luchini, feliz nos negócios, crescia economicamente na capital paulista.
Terrenos supervalorizados e algumas aventuras no câmbio consolidaram-lhe a
posição.
Era, enfim, proprietário, com um mundo de amigos.
Os princípios espíritas e os pais, agora desencarnados, haviam desaparecido no
tempo.
O casal endinheirado tinha a semana cheia.
Clubes, recepções, visitas, jogos...
Materialmente, tudo fácil, como barco em brisa leve, no dia azul.
Contudo, se Vera Linda, não obstante voluntariosa e de trato difícil,
perseverava no estudo, preparando o triunfo universitário, Luis Paulo caíra no
resvaladouro do vício.
Aos vinte e seis de idade, era um cabide de maus costumes.
Debalde tentavam pais e amigos arrebata-lo às companhias deploráveis e
perigosas.
Embrutecera-se na vida noturna, consumindo somas consideráveis, inacessível a
qualquer reprimenda.
César e a esposa, a princípio, gritaram, admoestaram, reagiram, mas era
tarde...E porque tivessem largo programa de vida social a atender, passaram a
ignorar a existência do filho, reduzindo-lhe a mesada, na suposição de, com
isso, melhorar-lhe os impulsos.
Enquanto o casal de novos ricos se dava ao luxo das viagens constantes,
desfrutando o prazer das grandes corridas no automóvel de luxo e favorecendo
esportes diversos, abraçando amigos ou bebericando em praias distantes,
mergulhava-se o moço na delinqüência.
III
Noite agradável de sábado.
O grande jardim, ladeando a casa isolada, recendia perfume raro.
Lá fora, jasmineiros floridos e o vento perpassando pelas folhas das
corismeiras.
César e Cilene, bem-postos, despedem-se da filha que se debruça sobre os livros,
à espera de exame próximo.
O casal tem encontro marcado.
Devem abraçar amigos recém-chegados de Nova York, residentes num palacete do
Jardim América, mas lhe deixam o número do telefone.
Que a filha não se preocupe.
Visita de pouco tempo.
Vera Linda está só.
Liga o televisor e reparte a atenção entre os livros e um cardápio de músicas
televisionadas.
O relógio silencioso marca as horas. Nove, dez, onze...
Súbito, ouve passos. Alguém chega.
Levanta-se, tranqüila, na convicção de que os pais estão de regresso.
Contudo, a breve instante, vê um mascarado que lhe aponta um revólver.
- Não grite ou morrerá! – fala, em voz arrastada.
E ordena ríspido:
- Dê-me a chave do cofre. Quero as jóias da casa. Você sabe... Adiante-se, não
há tempo a perder...
A moça, lívida, atende ao desconhecido que a impulsiona para o interior, como se
conhecesse a intimidade caseira.
Estarrecida, quer pensar, reagir...Mas não pode.
Obedece maquinalmente.
Retira a chave de minúsculo vaso, mas o intruso, de arma em riste, resmunga,
firme:
- Abra você.
A moça caminha à frente e penetra no aposento dos pais, seguida pelo malfeitor
implacável.
Ao abrir o cofre, lembra-se de que o pai conservava sempre um revólver em
pequenina gaveta lateral.
“Não vacilarei” – refletia consigo mesma.
Descerrando a porta de aço, encontra a arma, tateando-a com os dedos finos. E,
em movimento brusco, aperta o gatilho de encontro ao desconhecido,
fulminando-lhe o
coração.
O embuçado desfere grito rouco, cambaleia, e cai banhado em sangue.
A jovem apavorada corre ao telefone e disca.
No Jardim América, César e Cilene jogam calmamente o pif-paf.
O capitalista ouve, então, a voz da filha:
- Papai, papai, venha depressa! Matei um homem...Um ladrão...
Varado de angústia, o casal toma o carro, em companhia de dois amigos. Um deles
é médico. Fará quanto possa para amenizar a tragédia.
Em minutos rápidos, o grupo entra em casa.
Vera Linda soluça.
Descobrindo, no entanto, a face mascarada do corpo imóvel, surge a surpresa.
O morto é Luis Paulo.
A moça aproxima-se, agora semilouca, e atira-se nos braços hirtos do irmão
cadaverizado.
Os pais choram, mas o médico amigo, mentalmente calejado para a solução dos
grandes conflitos da consciência, sugere, calmo:
- César, conforme-se. O que está feito, está feito. Estamos à frente de um
suicídio.
Chamarei a assistência e assumirei a responsabilidade.
No outro dia, César e Cilene, de óculos escuros, assistem aos funerais do filho
como se estivessem num desfile de modas, e, passados dois meses, sozinhos e
desolados, acompanham a filha num carro fechado, para trancá-la num manicômio.
Hilário Silva